domingo, 7 de março de 2021

A SOMBRA DO QUE FOMOS

 



Repousa no fundo do espelho
Imagem desbotada
Dos guerreiros forjados em sangue e sonhos
Resquícios de vitórias parciais
Uma sombra do que fomos
Apagada pelo tempo
Ofuscada por nova luz
Atacada por espectros terríveis
Que julgávamos mortos pelo tanto de nocivos que eram

Ao passar pelo espelho da memória
Impossível não perceber
A brasa que não se apaga
Lembranças em gestação
Ímpetos nutridos com conhecimento histórico
Novos passos e abraços
Cujos rumos são alimentados
Pela perplexidade e pelo amor

Pois é necessário hibernar
Até que chegue a nova primavera

quinta-feira, 4 de março de 2021

A FALTA

 Faltam-me letras e frases,

Falta-me, sobretudo, coragem.

Porque as palavras sangram,

As letras não são suficientes

E a poesia não tem limites.

Sou pouca e enquadrada,

Não me sinto indignada,

Não sofro de amor e não sonho,

Não questiono nem faço louvação.

Não posso ser poeta.

A vida é pequena.

Falta-me alguma dimensão.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O MONUMENTO E A INDIGÊNCIA

 

Na praça vazia, dois mundos se contrapõem. 

Dois mundos se complementam.

 

 Sentada no chão, entre restos,

Conhecida andarilha deixou filhos, um amor torto e lançou-se ao mundo.

Acompanhada pelo álcool, pensa na vida que teve.

Quem passa apressado contempla a transparência

Daquela escultura que ainda tem veias e sonhos

Um macabro monumento ao não-humano.

 

Do outro lado, em pedestal destacado,

 um busto valioso de alguém sem identidade, inerte na sua eternidade de bronze,

celebra a vida desimportante sem significado para os que passam por ali.

Um monumento à indigência.

 

Mas existe a praça, síntese da vida.

Na praça vazia , dois mundos se contrapõem.

Dois mundos se complementam.

E ninguém se vê representado

Em nenhuma das duas estátuas.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

EU SIGO

 



 

Está escuro, mas vai clarear

Eu sigo

O medo não vai me parar

Pessoas dormem

Gente sofre

Baratas passeiam no chão

Eu sigo

Outros me seguirão?

Uma hora, eu sei, essa sombra vai clarear

Cada amanhecer tem o seu tempo

Não adianta acelerar

Bichos de hábitos noturnos

Povoam bares, bordéis, todos na escuridão

Crianças nascem

Crianças morrem de medo do bicho papão

Está escuro e eu sigo

Ninguém me para não

Em frente ou pelo atalho

Eu sigo

Que um dia a luz surgirá

Queiramos, desejemos, ou não.

Eu sigo

E quem quiser vir comigo,

Chega mais perto, me dê a mão.

O caos se renderá ao impulso da emoção.

 

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

BOCA DO INFERNO


 

Grita, que o mundo é surdo

Parla, que eu não escuto

Dessa boca infernal

Saem palavras que queimam

Palavras que cheiram mal

 

Mais que flechas envenenadas

Mais que tiro bem certeiro

Falas de um jeito que mata

Feres quem não te acata

Maldizes o mundo inteiro

 

Mas há de chegar o dia

Em que o fogo apagará

Em que fecharás os olhos

Pra teu coração escutar

 

Será tarde, sinto muito,

Para tentar ponderar

O fogo da tua consciência

É que te consumirá


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

EU PRECISAVA ESCREVER O POEMA

 


Era primavera, mas aquela árvore já jogava em minha cara as folhas secas que caíam. 

Métrica e rima não harmonizavam com as palavras duras

 que vi saírem de minha boca

e eu precisava tanto escrever aquele poema! 

Caminhos em curva me induziam a perder-me nas tangentes. 

A lógica da vida não poderia ser enquadrada no absoluto abstrato de minh'alma. 

E eu precisava tanto de escrever aquele poema!

Sem as letras certas, sem modelos e com sintaxe truncada, procurava o sol

onde apenas o frio da noite se oferecia. 

Ninhos vazios no alto das árvores

 já abduzidos por formigas 

e transformados em celeiros de alimento forte. 

Minhas pegadas desenhando tristes notas musicais no chão de terra batida. 

Os olhos tentando piscar em meio à tempestade de areia. 

Engoli seco e comecei a ler os rastros sem que me desse conta. 

A poesia me embalava.

O poema estava pronto.

sábado, 9 de janeiro de 2021

RETORNO A LUGAR NENHUM

 

Cheguei à cidade em dia triste.

Prenúncio do que viria a seguir

ou lamento final de uma saga de fome e intolerância?

Minha cidade menina

Apresentava-se a mim como anciã abandonada

Sem que eu tivesse tido tempo

De usufruir sua juventude de mulher alegre.

Não havia como voltar – para onde?

A vida inteira planejando o retorno

Para um lugar que só existiria

Em minha mente e em meu coração.

Minha cidade não era mais a minha cidade.

Estuprada e maltratada,

Desrespeitada e calada,

Minha cidade chorava um choro contido

De quem se conformou a prender as lágrimas e

A sufocar qualquer manifestação da alma.

Minha cidade chorava

Por eu ter deixado que tudo acontecesse

Sem mover um dedo, sem dar um passo, sem gritar um não.

Encostei a cabeça na vidraça e também chorei

Porque naquele instante entendi

Que, com minha distância e indiferença ao real,

 

 também fui violadora da minha cidade.