CARTA AO MEU AMOR
Aproxima-se a hora de meu amado
pisar novamente este chão.
De repente,
o solo do maravilhoso deixará de
ser sua morada
e ele me chegará
com a barba por fazer,
a roupa suada
e aqueles olhos que se desencantam
na mesma intensidade e freqüência
com que pesquisam tudo ao seu
redor;
então, o olharei meio penalizada
mas ainda cheia de desejo
por seu corpo salgado (que nunca
sei se de suor ou mar);
esboçarei uma palavra
e sufocarei para sempre o
imaginário.
Nosso amor será mais um
acontecimento banal
num jornal de ontem.
(o mistério do
fundo dos grandes oceanos
salga a carne,
apura os sentimentos.
A transpiração é
o resultado
do ritmo das
marés e das ondas
que sempre
trazem à tona
os segredos
mergulhados nos abismos do mar.
Ainda que tarde,
a escuridão
abissal, um dia,
encontra-se com
a luz do sol.
E arde. Ainda
que tarde.)
Não venha meu amor!
Nossa vida não comportaria
o acordar-trabalhar-consumir.
Não suportaria deixar de lhe dar
nuvens, espumas e vaga-lumes
para enfeitar nosso leito.
Não poderia abrir mão
de buscar estrelas que iluminassem
nossas pequenas mortes pelas
madrugadas ,
nem de um punhal reluzente
para sangrar-nos à meia noite.
Não venha
Nosso amor é dois mil quilômetros
de distância.
É a respiração presa do soldado na
guerra.
É uma viagem de avião sem
aterrissagem.
Um encontro escondido num bar vazio
à beira de uma lagoa deserta.
Não podemos nos amar café com pão,
deitados numa cama,
compromissos comuns na agenda.
Isso é pouco para o nosso amor.
(A lava dos
vulcões
é o orgasmo dos
grandes amantes.
A essência do
amor não cabe no corpo,
é expulsa
concreta e prazerosamente.
Às vezes, cria.
Às vezes, mata.).
A garantia do nosso amor
é o modo essencial de ser.
Eu me mordo de desejo
e choro de saudades
do homem que é meu só porque
distante.
Você se encaixa e se excita
com a lembrança infiel
da mulher que não vê, mas sente.
(A mulher recriada por nosso novo
Deus,
no paraíso infernal do sonho,
mulher pela qual se apaixonou.)
Ao nos depararmos um com o outro,
quanto de cada um
corresponderá à imagem recriada
pelo outro?
E quanto do outro
preencherá o espaço reconstruído
por cada um?
Como os grandes heróis épicos,
transitamos entre o real e o
imaginário.
Apenas, nossa realidade é virtual
e nosso imaginário, tão
comprometido...
Enquanto penso,
o insensato relógio do tempo
teima em nos aproximar.
Não venha!
E assim pensando e sentindo
não percebo aumentar a distância
que nos liberta das correntes da
história.
Não venha!
Para sermos um,
é preciso manter distantes os
corpos;
é preciso manter aceso o fogo;
é preciso buscar, fugindo;
e nos encontraremos sempre
em cada brisa ou tapa que tocar
nosso rosto,
em cada beijo que molhar nossas
bocas,
em cada música, gemido ou choro que
se escutar de longe,
em cada grito,
cada olhar,
cada adeus.