sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O PERIGO ESTÁ DENTRO


portas janelas telhados
forno armário entupimento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

blusa pinto cara suja
olho casa pensamento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

boca bosque ribanceira
garganta ralo argumento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

 riso graça festa praça
veia osso atrevimento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

dia noite amor e ódio
quarto escuro sentimento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

pálpebra bigode pentelho
útero bexiga excremento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

nariz pescoço cotovelo
artéria boceta alimento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

vento fogo mar e terra
mergulho e firmamento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

jornal ipod fedor
dejeto informação comportamento
o perigo não está fora
o perigo está dentro

terça-feira, 4 de setembro de 2012

POR AÍ



Tinha uma mania estúpida, não no sentido comum da palavra, de comprar sapatos. Comprava-os às pencas, aos potes, às toneladas e, depois, deixava-os naquele altar que era a sua sapateira. Praticamente os adorava todos os dias; adorava, em todos os sentidos da palavra. Nunca a vi reclamar desse ou daquele par, mas percebia, vez por outra, que havia os seus preferidos, da mesma forma como deixava no altar os calçados que a machucavam, esfolavam, apertavam ou que simplesmente não se comportavam de modo coerente quando estava com os pés dentro deles. Acontece que não conseguia se desfazer de nenhum e a coisa ia tomando um rumo difícil de se prever o ponto de chegada, no sentido pleno da palavra.
O problema é que tudo começou na infância e, tudo o que começa na infância, já está provado, deixa marcas profundas, no sentido problemático da palavra. Aquelas histórias que a avó e as tias velhas contavam detonou a tara, no sentido psicológico da palavra. Contos de fadas tem lá suas raízes e seus efeitos, às vezes, nocivos.
Aquela história de procurar a cara metade através da busca do príncipe pela moça, cujo pé coubesse no sapatinho de cristal, era a sua preferida. Sonhava com o dia em que o príncipe a encontraria e sonhava, sonhava, sonhava... no sentido impossível da palavra.
Passada a infância e a adolescência, veio a compulsividade pela compra dos sapatos. Veio o prazer em possuí-los. Veio a eterna insatisfação. Nem o príncipe apareceu, nem os sapatos tem serventia. E não falo de outra a não ser aquela para a qual foram confeccionados: calçar as pessoas e proteger os seus pés. Continua a dar passos em falso. No sobe e desce da vida, perde os sapatos pelas escadarias e esquinas, no sentido literal e no sentido infeliz das palavras.