quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Artigo da ILUSTRÍSSIMA (Folha de São Paulo), 23/02/2014

Instinto de subjetividade
Notícias da literatura brasileira no século 21
MARCO RODRIGO ALMEIDA
RESUMO No atual cenário da literatura brasileira, o sujeito, em sua esfera íntima, passa ao centro das narrativas. Marca principal detectada na ficção contemporânea por críticos ouvidos pela Folha, a tendência autorreferente, para alguns deles, ameaça a relevância do que se produz hoje ao afastar debates de relevância nacional.
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Caso escrevesse hoje um ensaio como "Notícia da Atual Literatura Brasileira - Instinto de Nacionalidade", Machado de Assis teria bons motivos para alterar o início do texto. A célebre frase "Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade" poderia ter o "nacionalidade" substituído por algo como "subjetividade".
A "Ilustríssima" ouviu na última semana críticos e acadêmicos para traçar uma espécie de "notícia da atual literatura brasileira versão 2014". Eles responderam a um questionário acerca das tendências, novos rumos, qualidades e deficiências de nossa ficção contemporânea, cuja íntegra está na página do caderno na internet.
Para quase todos, os enredos centrados no "eu", frequentemente narrados em primeira pessoa, com temas ligados, mais ou menos explicitamente, à vida do escritor, são predominantes na produção nacional dos últimos anos.
A visada sobre as letras brasileiras atuais remonta em muitos pontos às questões propostas pela "notícia" de Machado. O bruxo do Cosme Velho publicou o texto em março de 1873. Aos 33 anos, era ainda, como alguns críticos costumam brincar, o "Machadinho", autor até então apenas do primeiro de seus romances --"Ressurreição", lançado no ano anterior.
O texto editado originalmente no periódico "O Novo Mundo", no entanto, já vislumbrava pontos centrais do "Machadão" de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1891) e "Dom Casmurro" (1899) e da própria discussão sobre a literatura brasileira no século seguinte.
Ele fazia um contraponto a uma ideia corrente nas décadas posteriores à Independência do Brasil, a de que apenas a "cor local", os costumes e as tradições populares, o indianismo e a história de formação do país seriam patrimônios legítimos da literatura brasileira.
"O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço", escreveu.
Machado defende que nossa literatura supere tanto a tradição nacionalista quanto a submissão internacionalista. No fim das contas, trata dos dilemas da produção cultural de um país periférico, apartado do cânone internacional, emancipado havia apenas 50 anos e de público leitor mínimo.
Nos últimos anos, essas indagações, ainda pertinentes e inconclusas, ganharam nova luz em face da internacionalização do mercado literário, da globalização dos enredos, das bolsas de tradução, do fortalecimento das feiras literárias e da capilaridade das redes socais. Nas páginas seguintes, a "Ilustríssima" apresenta análises sobre esse novo cenário.
DIVERGÊNCIAS A preponderância da escrita focada na confissão de experiências pessoais deu destaque ao termo "autoficção", tradicional em países da Europa --caso da França, onde foi cunhado nos anos 1970 para designar a mistura entre autobiografia e ficção. Nos últimos anos, foi empregado para classificar obras das mais variadas, como "O Filho Eterno" (Cristovão Tezza), "Divórcio" (Ricardo Lísias) e "A Maçã Envenenada" (Michel Laub). Embora o domínio do texto autorreferencial no Brasil seja tido como fato, a reação a ele é bastante divergente.
"O termo autoficção é um equívoco, senão um desastre", afirma Luiz Costa Lima, professor emérito da PUC-RJ, e autor, entre outros, de "Frestas: a Teorização em um País Periférico" (Contraponto). "Supõe que haja uma maneira de falar de si --auto(biografia)-- que seja tão verdadeira' que não contenha uma montagem (em geral inconsciente) fictícia. E, ao contrário, que a ficção --como consolidação verbal de um relato fictício-- seja absolutamente isenta de traços biográficos ou extraídos da realidade'."
O crítico da Folha Manuel da Costa Pinto também se refere ao termo como "equívoco de teoria literária". "No Michel Laub, não há rigorosamente nada que estabeleça esse vínculo com a biografia do autor dentro das obras, ou mesmo por informações externas. E acho que o mesmo se aplica ao Marcelo Mirisola, ao menos nos livros que li. Acho que realmente há no caso de O Filho Eterno', que explora vivências biográficas conhecidas e explicitadas pelo autor --mas que no entanto é um caso ímpar na obra de Tezza. Seus livros posteriores nada têm de autoficção."
Outra crítica é lançada por Alcir Pécora, professor de teoria literária da Unicamp. "O que tenho lido na esfera do que se autonomeia como autoficção está bem mais próximo da falsificação da experiência e da história como espetáculo vulgar", diz.
Ele comenta que a produção recente é autorreferente, bem dispersiva e pouco marcante, em qualquer tendência que se observe. "Resumindo, na poesia, a praga é o kitsch, falta de fibra e de objetividade. Na prosa, o romanesco ralo, batido, com remissões ostensivas ao mundo dos livros e à cultura de fachada." E arremata: "Não dá para fazer boa literatura fazendo glosa ou trívia de literatura".
No campo oposto está Luciana Hidalgo, uma das principais pesquisadoras da prosa autorreferencial no país."O que interessa na autoficção é que esse eu', muito reprimido na história, pode enfim se revelar e se assumir, sem repressão", comenta. "Isso não necessariamente significa qualidade, mas acho que há ótimas narrativas autoficcionais totalmente centradas nas vivências íntimas de seus autores."
Essa visão é compartilhada pelo escritor e crítico Luiz Brás. Embora diga que nunca escreveu uma única linha autobiográfica, ele avalia que o apreço às vezes ingênuo pela verdade "está salvando da falência a literatura brasileira".
"Esgotada a hegemonia modernista, nossa produção literária corria o risco de também definhar. Mas foi salva pela literatura de linguagem transparente e conteúdo subjetivo de qualidade. Na ficção, os jogos metalinguísticos recuaram em favor da representação realista. E, na poesia, o estruturalismo antipático da poesia concreta perdeu todo o prestígio para a irreverência simpática da poesia marginal", provoca.
SENTIDO POLÍTICO Decorrência natural da subjetivação, segundo os críticos, seria a ausência de um sentido político em parte significativa da prosa brasileira. Costa Pinto fala de uma recuperação do conto urbano dos anos 1960 e 1970, mas com elementos mais centrados nos desvios individuais. Como exemplo, tanto no conto quanto no romance (para o qual, diz, os autores levam a estrutura elíptica das narrativas curtas) cita Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Joca Reiners Terron e Ana Paula Maia.
"Acho que a definitiva urbanização do país, a partir dos anos 1960, derrubou a ideia de um destino singular, sobre o qual a literatura teria a tarefa de meditar; sintonizou a literatura com questões gerais --embora a ficção sempre trate também de questões locais."
O professor de literatura da UFRGS Luís Augusto Fischer propõe uma explicação sociológica para a questão."Agora são bem mais raros os casos de escritores que lidaram com obstáculos realmente duros em sua trajetória. Isso redunda na quase ausência dos temas associados à mobilidade social no repertório temáticos das novas gerações."
As narrativas ancoradas não nos fatos externos, mas na condição testemunhal, podem representar ainda "uma forma de fugir ao isolamento estrutural do escritor em um país escasso de leitores".
As exceções, diz Fischer, são muito raras, mas dotadas de bom acerto --como "o mosaico ao mesmo tempo realista e experimental" de Luiz Ruffato e "o realismo minucioso e antiépico" de Rubens Figueiredo.
É com surpresa que Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira na Universidade Princeton (EUA), diz perceber, após tantos anos de predomínio de uma literatura mais dura e realista, uma certa tendência a buscar espaços íntimos, em que a delicadeza e o lirismo dão o tom."Eu não chamaria de deficiência, mas é claro que a questão das classes sociais pode ficar de fora dessa literatura."
Hidalgo também não acredita que a literatura atual seja politicamente engajada ("as redes sociais têm cumprido esse papel de forma mais direta", diz). Nega, porém, que a autoficção seja alienada.
"Em Todos os Cachorros São Azuis', Rodrigo de Souza Leão [1965-2009] narra com muito humor o dia a dia de um personagem (chamado Rodrigo) numa clínica psiquiátrica. Ele parte de sua própria experiência como esquizofrênico e, ao tecer essa bela ficção, deixa entrever todas as questões mais delicadas do que significa conviver com os próprios delírios e não ter o menor controle sobre isso (talvez apenas pela própria ficção). É, na minha opinião, um ato político essa exposição de si mesmo, fora da chamada normalidade'."
Para Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, o caso mais exitoso nessa seara é o de Ricardo Lísias no livro "Divórcio".
"É a prova de que um texto formado a partir de um explícito pacto autoficcional pode ser altamente político e significativo. Se no ato de leitura não lançarmos nossa atenção para os elementos biográficos do autor, estamos diante de uma contundente representação da classe média paulistana."
ÉTICA E ESTÉTICA Ser ou não político, argumenta Costa Lima, é apenas uma das possibilidades temáticas de um escritor. No caso, de relevância ética, não estética. O dilema seria bem mais amplo.
"Creio que a falta de debate de temas de relevância nacional, ou mais especificamente políticos, não deve ser separada de uma questão mais ampla: a falta de reflexão aprofundada em nossa expressão literária. Claro que há dimensão política em Machado, mas está conjugada com outras. É a dimensão humana que conta."
Essa dimensão ele identifica nas obras de Milton Hatoum, Nuno Ramos e no romance de estreia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, "As Visitas que Hoje Estamos". E em poucos obras mais. A seu ver, a razão está relacionada ao "exagero da subjetividade".
"Esse ensimesmamento excessivo, no romance e sobretudo na poesia, piora o estado das coisas. A reflexão exige um distanciamento, uma saída de si."
A opinião do professor ecoa, em parte, a de Machado, que no artigo de 1873 dizia estar o romance brasileiro isento de "tendências políticas, e geralmente de todas as questões sociais", alheio "às crises sociais e filosóficas".
Uma diferença fundamental, contudo, os separa, talvez ainda mais vasta que os 140 anos entre o ensaio e esta enquete. Machado falava de uma literatura ainda adolescente, insípida em muitos aspectos, mas ativa no debate nacional de sua época.
Hoje, acreditam os críticos, essa forma de representação se perdeu. "Um importante sintoma da produção contemporânea é o esvaziamento do desejo de representar o Estado-nação. Não há mais espaço para a narrativa fundacional da nação", conta Patrocínio.
"O que ocorre", acrescenta Pécora, "é que essa centralidade obtida em decorrência do fortalecimento do Estado-nação é um ciclo terminado, em função mesmo do enfraquecimento do Estado-nação".
"Isto posto", conclui, "não entendo que seja possível qualquer retorno à situação histórica anterior nem acho que nos cabe qualquer nostalgia da brasilidade perdida. Cabe, sim, à literatura buscar descobrir uma nova centralidade para si no cerne da vida social. É isso ou conformar-se a um papel lateral, secundário na cultura".
Encerrando esta tentativa de "notícia", podemos retomar, com modéstia --e desta vez sem alteração-- o fim do ensaio de Machado: "eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro".

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

HAICAI

O haicai, um poema de origem japonesa, define-se pela precisão e objetividade, demarcadas pela economia de palavras.
Os aspectos que nutrem o assunto em questão, Haicai, podem ser constatados, na prática, através de alguns exemplos. Ei-los, portanto:
viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na superfície
Paulo Leminski 


Um ritmo da vida
O berço vai e vem.
Mas vai com a quê? – Um ai.
E vem? – Sem ninguém.
Guilherme de Almeida


Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos
Millôr Fernandes
Indícios atestam que tais poemas possuem uma estrutura diferente daquela que convencionalmente conhecemos. Entre outros elementos, estão a precisão e a objetividade, demarcadas pela economia de palavras.
Os temas são simples, banais, extraídos talvez da fugacidade das coisas, bem como de elementos da natureza. Tais aspectos são atribuídos a essa modalidade lírica, cuja origem é japonesa (haikai, vocábulo composto de hai = brincadeira, gracejo e kai = harmonia, realização).
No que diz respeito à forma, são demarcados pelos seguintes elementos:
* O primeiro e o terceiro verso são pentassílabos (formados por cinco sílabas poéticas) e o segundo é heptassílabo (constituído de sete sílabas).
* São constituídos por apenas três versos.
Entre os poetas brasileiros que tanto cultuaram tal modalidade poética citamos Guilherme de Almeida, Paulo Leminski, Millôr Fernandes e Olga Savary.

Por Vânia Duarte

http://www.brasilescola.com/literatura/haicai-um-poema-origem-japonesa.htm

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Artigo de Heloísa Buarque de Holanda

Um problema quase pessoal

Atualizado em 14 de setembro | 8:09 PM
No campo da análise do discurso, o que estaria sendo evitado pelos estudos feministas no Brasil?
O debate sobre a condição feminina, expresso nas obras literárias e na imprensa, conhece um pique na segunda metade do século XIX até os anos 20, quando emerge o movimento modernista nas artes e nas ciências sociais. A questão da mulher sai então do circuito da literatura e passa para as mãos da sociologia, da antropologia e, muito recentemente, para as da história e da psicologia.
Voltando de forma brevíssima ao século XIX, a partir dos anos 50, começa o processo urgente e inadiável de definir os contornos da nação brasileira. Os caminhos percorridos pelos discursos que imaginaram a nação trouxeram, sistematicamente, a metáfora da “maternidade republicana”, como figura fundamental, ou seja, a hiper-valorização do papel da mulher como “civilizadora” e responsável pela idéia de uma nação moderna, educada e homogênea.[1]  No caso brasileiro, evidenciam-se alguns traços peculiares.  Nos discursos de construção nacional, já é conhecido com quanto desconforto a importação das ideologias liberais conviviam  com a vigência do regime escravocrata. Por outro lado, as idéias de uma homogeneização racial, supostamente necessária para a definição de uma identidade nacional e moderna, passavam também por complicadores evidentes.  Começa a ser esboçada a estrutura da ambiguidade discursiva, que vai tornar-se progressivamente saída e limite dos discursos sobre raça e gênero na cultura brasileira. A partir dos anos 20, o modernismo surge como capaz de teorizar e operacionalizar esta ambiguidade através da imagem (até hoje hegemônica no campo das artes) de um “Brasil carnavalizante”. É a época áurea da definição de um Brasil desconhecido e moderno, e, neste debate, as mulheres silenciam ou são silenciadas.
É importante observar no design modernista da “cultura” ou da “identidade” brasileira, alguns aspectos que determinam essa ambiguidade estrutural dos discursos sobre uma mutante “identidade sem nenhum caráter” que, sem dúvida, reverberam na construção da subjetividade da mulher e do negro no Brasil:
1. Uma relação bastante problemática com o engate do presente no passado, ou mesmo uma convicção de que o passado não existe ou não tem importância, o que propicia o eterno retorno da clássica pergunta “que país é este?”.  Não hesitaria em afirmar que as representações construídas em torno da “identidade brasileira” são subsidiárias e produtoras da permanência desta dúvida com todas as vantagens e desvantagens que possa acarretar.
2. Nesta perspectiva, torna-se clara a importância relativa das narrativas fundadoras ou a eterna mobilidade no tempo e no espaço de um  projeto fundador contraditório.  Nosso passado não tem heróis nem traz à tona suas “raízes” negras ou índias, cujos traços ou marcas culturais teriam se dissipado no quadro da mestiçagem e da “democracia racial” brasileira. Os mitos da mistura racial e de uma suposta desierarquização das relações entre os sexos muito devem à proporcional valorização da amnésia histórica, que informa as diversas imaginações de Brasil, uma nação cuja identidade estaria exatamente na capacidade de adiar eternamente sua definição.
A possibilidade deste tipo de formação discursiva diz respeito às formas de organização social e política das elites brasileiras, que apontam para a recorrência  de uma identificação de tipo vertical na escala social, preferencialmente a de organização ou solidariedade de tipo horizontal em torno de objetivos ou interesses comuns entre as diversas classes, raças ou categorias profissionais às quais eu acrescentaria o evidente desconforto em relação a um confronto de caráter mais político entre os sexos. [2]  O estilo oficial da malandragem e da sedução – artifícios talvez considerados “femininos” – pode ser visto, por esta via, como “autenticamente nacional”.
O discurso modernista também se nutre deste paradigma. O modelo antropofágico, definido pelo modernismo como o traço por excelência de nossa identidade cultural, evidencia a mesma ordem de problemas. Basicamente, o gesto antropofágico é aquele que, em vez de estabelecer um confronto, prefere “deglutir a diferença”. A deglutição do “outro”, no caso tanto o discurso colonial quanto o discurso modernizador, é seguida pela opção de expelir o que “não interessa”. Num interessante trabalho, Zita Nunes coloca uma pergunta vital: “No caso da antropofagia, quem come quem? e neste banquete o que é considerado oportuno de ser expelido?”[3]  No caso da antropofagia modernista, colocada aparentemente em termos da relação colônia/metrópole, o nativo devora brava e legitimamente o agressor. O que volta a desconcertar quando pensamos em dois marcos do pensamento tropicalista, o Macunaíma de Mario de Andrade e o Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, é que não é possível identificar em nenhum dos dois trabalhos a presença forte de um previsível marco fundacional (ou, como é comum nas obras de definição nacional, de um “phallus fundador”).  Ao contrário, é a permissividade, a  predisposição para a mistura (ainda que traga males e doenças degenerativas) e a fragilidade polimorfa que rege o mito fundador antropofágico e tropicalista. O Brasil, “deglutidor das diferenças”, é construido pelo modernismo como o reino da “cordialidade”, do calor receptivo, da predisposição “nata” para receber o “outro” e com ele se identificar. Neste mesmo caminho, reforço agora a idéia da dificuldade em estabelecer  e instrumentalizar  com clareza, até bem pouco tempo, as divergências de interesses entre classes sociais ou entre grupos etnicos ou sexuais no Brasil.
Isto me lembra uma palestra de Jean Franco, no Ciec, em 1988, sobre o filme Dona Flor & Seus Dois Maridos. Um filme considerado “autenticamente sexista e nacional”, mas revelador de um dado, no mínimo, curioso: o desinteresse flagrante pela visão frontal do nu. Teríamos assim, sugerida num dos clássicos do “inconsciente erótico brasileiro”, a evidência de uma espécie de estética do traseiro, seja masculino ou feminino, cujo sentido básico seria precisamente a ocultação do phallus. Da mesma forma, a idéia tradicional da carnavalização como identidade cultural brasileira, tendo a subversão como norma e a desordem como parâmetro, também é complicada.  O discurso carnavalizante, ainda que sentido e experimentado como de natureza liberal e progressista, não parece atrair os autores negros nem as escritoras mulheres, evidenciando, no conjunto de sua produção discursiva, um ponto de vista de gênero, de raça e de classe bastante marcado. A reversão carnavalizante ainda que possa ser avaliada como uma estratégia de resistência raramente evidencia um projeto mais radical de transformação social. A sedução e a malandragem são apenas algumas das variações das formações discursivas, que promovem a ambígua construção de uma “subjetividade brasileira” entendida como transexual e transracial. Entretanto, essa mesma agilidade malandra não tem sido instrumentalizada, pelo pensamento feminista brasileiro, no lidar com os mitos, paradigmas e com as sutilíssimas narrativas mestras de nossa suposta “identidade nacional”.
Mesmo identificando o mal estar sintomático que marca a crítica literária escrita por mulheres em relação aos discursos sobre o Brasil, tenho o palpite de que será pela via dos estudos de gênero e de raça que se responderá de uma vez por todas ao já secular enigma que insiste em manter em aberto a pergunta “Que país é este?”.


[1] Ver Miriam Moreira Leite. Uma Construção Enviesada: A Mulher e o Nacionalismo no Sec. XIX. (Mimeo. Trabalho apresentado no seminário “De que fala o Nacionalismo?” Ciec, UFRJ, 1989) e H. B. Hollanda. Letras, Armas e Virtudes. (Mimeo. Trabalho apresentado na V Encontro da ANPOLL, 1990)
[2] A respeito da lógica das relações de poder na sociedade brasileira são exemplares os estudos de Roberto Schwartz sobre os efeitos da ideologia do favor  ou os trabalhos sobre os rituais da malandragem e da carnavalização de Roberto da Matta.
[3] Zita Nunes. Os Males do Brasil: Antropofagia e a Questão da Raça. Série “Papéis Avulsos” n.22, Ciec/UFRJ, 1990

IN http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/um-problema-quase-pessoal/

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Entrevista: João Ubaldo Ribeiro

A caminho do cânone

João Ulbaldo RibeiroAos 71 anos, João Ubaldo Ribeiro revê sua carreira, fala sobre a repercussão de sua obra no exterior e relembra como foi escrever, há quase 30 anos, Viva o povo brasileiro, sua obra-prima


Por Luiz Rebinski Junior 


João Ubaldo Ribeiro conseguiu o que no Brasil parece pouco provável a um escritor: conciliar sucesso de público com a boa recepção crítica de sua literatura. O que não é pouco em se tratando de um escritor cujo maior sucesso editorial é um livro de 700 páginas que faz um recorte de quatro séculos na história da Bahia, em um texto que mistura história, memória e leves toques de literatura fantástica. Trata-se de Viva o povo brasileiro, romance com uma trajetória de quase três décadas e que se mantém atual, estudado e discutido. Ainda assim o romancista prega cautela àqueles que tratam Viva o povo brasileiro como um clássico da literatura brasileira. “Acho um pouco prematuro chamá-lo de clássico. Mas é um livro que dura desde que saiu, portanto já está durando uns 30 anos”, diz o escritor em entrevista exclusiva ao Cândido. 

Autor de outros romances célebres, como Sargento Getúlio e O sorriso do lagarto, João Ubaldo também deve parte de seu sucesso com o público à sua marcante presença como cronista na imprensa brasileira. Desse trabalho, resultaram livros como O rei da noite e Um brasileiro em Berlim. A crônica como uma fonte de renda aos romancistas é uma dos assuntos abordados aqui pelo escritor, que gravou as respostas em um arquivo de áudio e as enviou à reportagem, o que permitiu ao autor divagações a cerca dos temas que lhe foram sugeridos, como a tradução que fez para o inglês de seus próprios livros, a repercussão de sua obra no exterior e sua formação como intelectual na Bahia, ao lado de figuras como Glauber Rocha. 
Eloquente, João Ubaldo dá à entrevista um caráter de bate-papo com o leitor, que pode conferir um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos respondendo questões de forma franca e sem rodeios. 

Nos últimos anos, o senhor tem lançado muitos livros de crônica, sempre intercalando com os romances. A crônica, além de ser uma de suas fontes de renda, é um gênero que lhe ajuda enquanto escreve romances? 
Os livros de crônicas são meus porque eu escrevi essas crônicas, mas a ideia de cada volume, a data de publicação e a própria seleção das crônicas, é feita pelas editoras. Geralmente mandam me consultar sobre a seleção, mas eu tenho preguiça de ficar lendo aquele negócio todo que escrevi, e que às vezes eu gostaria de meter a mão e melhorar, porque acho que saiu ruim, mas também não quero ter esse trabalho, afinal de contas já foi publicado, então deixa como está mesmo. Enfim, não sou eu que programo meus livros de crônicas, são as editoras. Agora, se escrever crônicas é bom para um romancista? Não deixa de ser, pois haja ou não a chamada inspiração — a qual, aliás, eu não acredito muito, talvez até por causa da experiência do jornalismo —, a crônica tem que sair. Você não pode dizer “prezados leitores, ontem não aconteceu nada” e sair com um jornal em branco. É bom escrever crônica, por um lado, para quem é romancista, porque o sujeito fica sempre com a redação apurada, a intimidade com as palavras sempre aguçada pelo uso. Enfim, é bom. Mas, 
claro, a felicidade não pode ser comprada, às vezes ou frequentemente, quando se está escrevendo um romance, a obrigação de interromper a concentração, quando se está absorvido pela história, em vigília ou acordado, é ruim. 

Seus livros já venderam mais de 3 milhões de exemplares em um país em que nos acostumamos a dizer que não se lê. Como o senhor chegou a esses números em uma nação de poucos leitores?
Não sei como esses livros venderam tanto, não faço ideia, as coisas não acontecem repentinamente. Estou com 71 anos, escrevo há praticamente cinco décadas, até mais na verdade, porque acho que meu primeiro conto foi publicado quando eu tinha 17 anos, em 1958, não tenho certeza. Mas, de qualquer forma, são 50 anos. Então nada acontece subitamente. 
Para quem tomou conhecimento de minha existência agora, parece que as coisas aconteceram rápido. Para quem lê biografias também. Fulano de tal nasceu em tanto de tanto de tanto, aos 18 anos ingressa na faculdade de tal, forma-se... Mas o que tem no meio do caminho as pessoas não leem, parece tudo fácil, uma transição não traumática. Enfim, eu não sei, não aconteceu de repente, então, nunca houve impacto. Sempre gostei que meu livro vendesse, mas nunca fui um sucesso estrondoso, acho eu. Aliás, acho não, nunca fui. Então, já tive livros que ficaram muitos anos em listas de mais vendidos — mas não estourando. Tenho essa sensação, que estouro nunca fui. Mas talvez por eu escrever em jornal, isso me popularize um pouco, amplie o número de leitores, não sei explicar. 

Além das vendas expressivas de seus livros, seu romance mais famoso, Viva o povo brasileiro, é um tomo de setecentas páginas, com uma narrativa entrecortada que conta quatro séculos da história baiana. Certamente não é a sinopse de um previsível best-seller. Em sua opinião, por que o livro se tornou um clássico? 
É, realmente, Viva o povo brasileiro é um livro considerado difícil. Não acho tanto assim, mas talvez, pelas circunstâncias do Brasil, seja um livro difícil. Não tenho muita condição de avaliar. Agora, acho um pouco prematuro chamá-lo de clássico. É um livro que repercute desde que saiu, portanto já está durando uns 30 anos, não tenho certeza. E até hoje é estudado, vende bem, é adotado em vestibulares, etc. Até tenho medo de os meninos ficarem com raiva de mim pelo resto da vida. Mas chamá-lo de clássico, acho um pouco prematuro, aliás, acho bastante prematuro. 

A política é um traço marcante em sua literatura. De Sargento Getúlio a Diário do Farol, as ações dos personagens e as tramas sempre dão margem para uma leitura mais politizada. Há alguns anos, o senhor escreveu um ensaio sobre o tema, chamado Política. Depois de um período de repressão, mas também de bastante engajamento, hoje, com a democracia, tem-se a impressão de que viramos apolíticos. Em sua opinião, melhoramos ou pioramos nos últimos 30 anos em relação à nossa participação nas questões nacionais? 
Acho que não estamos menos politizados, não. De certa forma, essa é uma pergunta muito complicada, porque envolveria uma conversa de horas ou dias, ou até mesmo um seminário sobre as contradições e os enigmas brasileiros de que nós sempre ouvimos falar e que nunca conseguimos destrinchar, nunca conseguimos compreender, por mais que grandes interpretes tenham tentado, como Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre. Mas nós, até hoje — é meio deprimente constatar isso —, nos comportamos muito mais como súditos do que como cidadãos. 
Nos acostumamos, inclusive, à tutela do governo, a aspirarmos ao funcionalismo público no sentido mais lato da palavra, como segurança e garantias de benefícios muitas vezes descabidos e não encontradiços em outros países. Nós aprendemos a ser apáticos, dominados e a ter pouco senso de comunidade, ou seja, pouco senso de interesse coletivo. Nós temos uma formação que eu não sei de que buraco saiu, não tenho vontade de fazer grandes análises, mas temos uma tradição, até hoje presente, com pequenas variações, aqui e ali, de individualismo. 

O senhor costuma dizer, assim como seu colega Luis Fernando Verissimo, que escreve por dinheiro. Muitos autores acham isso um sacrilégio. Esse tipo de postura denota certa falta de profissionalismo de nossos escritores? 
Acho que pouca gente hoje tem essa opinião. Porque se escrever por dinheiro não tivesse importância, então só podiam escrever aqueles que tivessem recursos suficientes para dedicar seu lazer à obra literária, ou seja, escreveria quem pode, de certa maneira isso seria uma coisa discriminatória. Não conheço nenhum contemporâneo que, como aqueles poetas russos da União Soviética, como [Yevgeny] Yevtushenko, que era extraordinariamente popular, viva da poesia. Mas no mundo todo, os poetas são geralmente professores universitários, bibliotecários, enfim, exercem outras profissões porque a poesia não costuma dar camisa a ninguém. Mas os escritores de ficção, de prosa em geral, são cada vez mais remunerados, embora haja agora esses problemas de direito autoral por causa da internet, mas isso já é outra conversa. Também não acho que é falta de profissionalismo não, porque acho que cada vez mais há essa consciência dos escritores de que eles têm que ser pagos, não é nenhum favor. 

Mas há certo preconceito com livros feitos por encomenda, não? 
Quando digo que escrevo por dinheiro, em primeiro lugar, estou seguindo uma tradição e uma norma. Norma não, mas um exemplo, digamos assim, muito dignificante, porque foi assim que viveu [Charles] Dickens, foi assim que viveu [Honoré de] Balzac, foi assim que viveu Walter Scott. As pessoas acham que encomenda é uma coisa aviltante, quando, na verdade, a encomenda é regra. Sempre lembro isso, toda a arte da Renascença foi feita por encomenda dos mecenas da época, pelos papas, pelos homens fortes das várias repúblicas e ducados e outros tipos de organização política em que se dividia a Itália antes da unificação. Isso é uma tradição meio atrasadinha do Brasil, que já está saindo disso. É uma tradição meio romântica, e meio inspirada em tragédias chorosas, sejam escritas, sejam no cinema ou teatro, em que sempre tem aquele poetazinho tuberculoso definhando numa água furtada úmida, num frio horroroso e morrendo aos 23 anos, deixando a desiludida amada, aliás, a ingrata amada, melhor ainda, casada com um fidalgo de boas posses. Na realidade, escritor, como qualquer pessoa, gosta de dinheiro e quer. 

O romance Liberdade, do escritor Jonathan Franzen, tem feito sucesso por, supostamente, ser um livro-mural, que resgata a estratégia de romancistas clássicos como Tolstói e constrói um painel de nossa época (os anos 1990 e 2000, principalmente). Entre as várias discussões que o romance suscitou, uma se refere à falta de romances similares no Brasil. Acha que faltam livros com esse tipo de ambição — como é Viva o povo brasileiro — em nossa história literária? 
Não li esse romance. Tenho um problema, porque fico lendo as mesmas coisas o tempo todo, meu pai dizia que isso era um claro sintoma de loucura. Às vezes, passo lendo as mesmas páginas, dos mesmos autores, durantes meses. Então é como se eu não tivesse tempo de ler esses negócios. Acredito, também, que não ia ficar muito fascinado com esse livro. As pessoas não acreditam, mas já contei essa historia várias vezes, a gênese de Viva o povo brasileiro surgiu de um encontro casual que tive com Pedro Paulo de Sena Madureira, que na época trabalhava na Nova Fronteira, que era minha editora. Ele brincou comigo, estava saindo o Vila real [romance de João Ubaldo publicado em 1979] e ele falou assim: “vocês, escritores brasileiros, só escrevem esses livrinhos fininhos para ler na ponte aérea, que a gente traça num instante”. Aí brinquei com ele: “agora você vai ver, vou fazer um livro grosso”. A primeira coisa que pensei, claro, não foi fazer Viva o povo brasileiro, que eu não tinha na cabeça, mas fazer um livro grosso. Talvez, então, inconscientemente, eu tenha passado desse dia em diante, a construir na cabeça, sem notar, sem saber, um livro grosso, que viria a ser Viva o povo brasileiro. Mas eu não sei se faltam livros com esse tipo de edição, não sei se eles são necessários, não acompanho essas coisas. 

Ainda sobre essa questão da identidade como tema de nossa ficção, o senhor consegue perceber a influência de Viva o povo brasileiro em livros que vieram depois dele? 
Acho que influência mesmo, não. Tem um livro [Um defeito de cor, da autora mineira Ana Maria Gonçalves], que é enorme, acho que até maior que o Viva o povo brasileiro, em que aparecem personagens meus. Evidentemente, tomei isso como uma homenagem, uma citação, não como plágio, porque ela fala, se não me engano, em Amuleto, que é personagem meu, fala no barão de Pirapuama, que também é inventado por mim. Mas isso não chega a ser uma influência. De resto, eu nunca notei nada não, acho que nunca influenciei ninguém. 

Um fato interessante em sua carreira é que o senhor traduziu uma de suas obras, Sargento Getúlio, para o inglês. Qual é a história por trás desta tradução: foi falta de confiança nos tradutores estrangeiros ou algo inusitado? 
Não, eu traduzi dois. O Sargento Getúlio foi o primeiro livro traduzido, é uma história muito comprida, mas acabou batendo em uma editora que, acho eu, nem mais existe, a Houghton Mifflin, de Boston, uma editora respeitada, mas que fechou. Fechou não, foi absorvida por outra, sei lá. Essa editora encomendou uma tradução, aí me mandaram as 30 primeiras laudas, e estava uma coisa terrível. Então, como era meu primeiro livro no exterior, e logo nos Estados Unidos, após assinar o contrato com eles, choveram propostas do mundo todo para publicar o livro, e eu naquela empolgação, tinha 20 e poucos anos. Aí não resisti e me ofereci para fazer a tradução. Não tinha nenhum prestígio para eles pagarem um tradutor altamente qualificado, e assim mesmo era difícil de achar, porque aquele livro é difícil até para muitos brasileiros, quanto mais para um americano, mesmo que saiba bem português. Aí fiz a tradução, foi terrível, mas fiz. Em seguida, por uma razão semelhante, fiz a tradução de Viva o povo brasileiro. Não se achava tradutor para aquilo, e meu agente, que é muito amigo meu, Thomas Colchie, me convenceu que talvez eu fosse a única pessoa capacitada a traduzir aquilo, e aí acabei traduzindo, mas não gosto não. Passei mais tempo traduzindo o Viva o povo brasileiro do que escrevendo o romance. 

A vida literária hoje se intensificou. Os escritores quase não param: são convidados para bate-papos, escrevem para jornais e revistas e participam de programas de TV. O senhor certamente foi afetado por esse assédio. Como se organiza para que sua vida de escritor não se torne um problema para a criação? 
Recebo de um a dois convites por dia, e tem uns que tenho vergonha de recusar, mas é humanamente impossível. Humanamente impossível não, é até desumanamente impossível, enfim, é terrível, as pessoas não compreendem, ficam ofendidas quando recuso, insistem, insinuam discriminação, dizem que eu só quero ir à Europa ou a grandes centros, ficam chateadas. Hoje mesmo me enviaram uns dois convites, um de Ribeirão Preto e o outro de Pernambuco. E este ano, o grande Jorge Amado, meu compadre e amigo, faria 100 anos, e aí eu não posso recusar uma porção de convites para comparecer a eventos, em reverência à memória dele. 
Vou viajar pelo mundo todo, com exceção do Japão e da China — lugares que tenho certa relutância de ir —, mas à Europa eu com certeza vou. Mas isso é complicado, no ano passado não consegui escrever, e neste ano também não vou conseguir. O romance, se a gente deixar, abandonar, na volta desanda, perde-se o livro. Quem me ensinou essa expressão foi o Rubem Fonseca, que é muito amigo meu. E ele tem toda razão. No ano passado, escrevi não sei quantos começos de romance, desandou tudo, era uma interrupção atrás da outra. No ano que vem, acho que vou ter que me esconder. 

Recentemente o senhor disse que não gosta do “papo literário”. Em outras palavras, a literatura é fascinante, o que estraga são os escritores (quando resolvem falar fora de seus livros, em suas confrarias)? 

O papo literário a que eu me refiro não é o papo com escritor, é papo com amador. Não que eu tenha algo contra, evidentemente que não, mas essa chatice raramente ocorre com profissionais. Por exemplo, não entra na cabeça de algumas pessoas que eu não tirei da vida real aqueles personagens, ou como diz aquela expressão que eu detesto, que me inspirei em alguém. É que acontece o seguinte: se meus personagens são verossímeis, é natural que eles sejam parecidos com alguém. Se estou caracterizando um personagem pão-duro, muita gente se enquadra nesse perfil. Daí porque conhecem alguém de Itaparica, ficam falando isso. 
É um saco, insuportável. Outra coisa que acontece é gente que fica alugando para sugerir assuntos. A pessoa não compreende que não sai dessa forma, não vem de fora para dentro. É uma maneira meio barata de se dizer, mas não me resta outra maneira de dizer. Então, ficam dizendo “você podia escrever sobre não sei quem”. Ou acham que eu recolho histórias. 

Um de seus livros de crônicas, O rei da noite, é quase todo inspirado em causos de sua época de boemia. Mas há muitos anos o senhor não bebe mais. Nesses anos de abstinência, o escritor João Ubaldo chegou a sentir saudade da bebida? Ou seja, a bebida, como tema, lhe faz alguma falta? 
Não. Passei não sei se 11 ou 12 anos sem beber, não bebia absolutamente nada. Hoje não tenho mais vontade de beber uísque. Mas antes, só não bebia dormindo, mas bebia o tempo todo. Mas de um tempo em diante começou a me prejudicar de uma forma avassaladora, daí parei. Quer dizer, não foi fácil, não foi num estalar de dedos, foi aos trancos e barrancos, mas acabei parando. E fiquei 12 anos sem tocar em álcool. Hoje, não tenho vontade nenhuma de beber como bebia antigamente, a mínima vontade, nem conseguiria. Mas nos fins de semana, às duas da tarde de sábado e às duas horas no domingo, me junto com minha turma de boteco aqui no Rio, que por acaso não tem literato nenhum — podia ter também, não sou contra a presença de gente do mesmo ramo, mas não tem literato nenhum. Aí eu tomo de quatro a seis chopes, acho eu, no sábado, e outros quatro a seis no domingo. De resto, não me faz falta não. Também não sou mais notívago. 
Mas isso, claro, também é da idade. Vivo dentro de casa, não gosto de sair, estou casado há 30 e poucos anos, eu e minha mulher nos damos muito bem, conversamos muito, batemos papo, e aí não posso mais ser chamado de boêmio. 

Seus livros foram traduzidos para vários idiomas, mas nossa literatura ainda é pouco lida fora, no mercado de língua inglesa, principalmente nos Estados Unidos. Como tem sido a recepção de seus livros fora do país? Quais são os lugares em que sua literatura é mais aceita? 

A recepção dos meus livros, criticamente, geralmente é boa, com exceção do Viva o povo brasileiro nos Estados Unidos. O Viva o povo brasileiro já nasceu um pouco errado, porque não se pagam as resenhas pelo número de páginas do livro, então acho muito compreensível que um americano, numa quinta-feira em Nova York receba, para escolher para resenhar, vamos dizer, oito livros, só podendo resenhar um. Ele olha aquele tijolo — vindo de um país cuja capital é Buenos Aires e onde se fala também francês — e na sua mesa tem outro livrinho ótimo, de um alemão fantástico que está na moda em Berlim, de 180 páginas. Você acha que ele vai encarar as 700 páginas do Viva o povo brasileiro? O pagamento é igual, então ele não encara. E, além de tudo, não gostaram do livro. Enfim, meus livros nos EUA não fizeram o mínimo sucesso, inclusive o New York Times Book Review deu uma esculhambada no romance, o que fez o deleite de muitos brasileiros. É engraçado isso, de vez em quando alguém me dizia assim, com uma cara compungida, “seu livro foi esculhambado no New York Times, que coisa”. Eu ouvi isso umas três ou quatro vezes e aí elaborei uma respostinha. Quando sentia essa hostilidade velada, esse veneno quase explícito, eu dizia “é verdade, mas e você, quantas vezes foi esculhambado no New York Times?” Dá um certo status. Mas, engraçado, meus livros se dão muito bem em países nórdicos. Na Holanda, já ganhei até prêmio, homenagens, saiu praticamente tudo que escrevi, em varias edições. Viva o povo brasileiro lá, que se chama Brazilië, Brazilië, sai reeditado praticamente todo ano, o que é uma coisa raríssima. Um dos personagens do livro, o caboclo Capiroba, meu personagem antropófago, acha muito melhor comer holandeses de que comer portugueses e espanhóis. Prefere muito a carne holandesa, e os holandeses adoram essa historia deles serem mais gostosos para comer, literalmente, do que os portugueses e espanhóis, de quem, aliás, eles nunca gostaram. Na Alemanha também, meus livros são bastante editados e lidos. Na França, sou conhecido pelo mundo acadêmico, editado prestigiosamente pela Gallimard. Enfim, minha obra está no mundo todo, está na Europa inteira, acho que só não na Grécia e no leste europeu. Mas os lugares onde meus livros são mais aceitos são Alemanha e Holanda e, criticamente, na França. 

O senhor foi amigo de Glauber Rocha e é uma das principais fontes de A primavera do dragão — A juventude de Glauber Rocha, livro de Nelson Motta. O livro recebeu muitas críticas a respeito de erros sobre datas e nomes equivocados. Leu a biografia, o que achou? 
Eu li mais ou menos o livro, o Nelsinho é amigo meu, gosto dele, já foi meu companheiro de viagem à Copa, em pelo menos uma ou duas, eu o conheço há muitos anos. Enfim, me dou muito bem com ele e ele realmente me ouviu sobre muita coisa. Ele misturou uns troços lá, mas acho que isso não é grave. Quer dizer, não sei, os meus contemporâneos, amigos do Glauber e meus também, ficaram indignados com o livro. Eu não fiquei. Passei os olhos, não li com muita atenção, mas ele cometeu uns enganos. Acho que ele queria fazer um retrato colorido da juventude de Glauber, onde esses detalhes não são tão essenciais quanto seriam numa biografia historiográfica com mais cuidados acadêmicos. Mas eu era amigo de Glauber, sou amigo de Nelsinho, quero paz, amor, essas coisas. 

Aliás, o senhor fez parte da geração Mapa, que atuou na literatura, nas artes plásticas, no cinema e no teatro nos anos 1950 e 1960. O que mais o marcou nesse período, além de sua amizade com Glauber Rocha? 
Fiz parte da geração Mapa, mas com reservas, porque nunca publiquei nada na revista Mapa, em nenhum dos dois números. Mas era amigo, sou amigo de todos, acho que muitos continuam vivos, graças a Deus. Era um período de grandes ilusões de juventude, período de efervescência cultural na Bahia, criação de escola de teatro, criação de seminários de música, colóquios internacionais, a Bahia era uma festa cultural nessa época. Grande parte devido à ação do reitor Edgar Santos, que foi certamente o reitor mais notado da história da Universidade Federal da Bahia. Essa época é ainda época da juventude cheia de ilusões, de ideais, grandiloquente, às vezes radical, cheia de planos para o futuro, esperança, projetos, amores, leituras, debates, paixões, era um tempo bom, claro que era. Mas ter 71 anos também é bom. 




Sargento Getúlio foi lançado em 1971 e ganhou o Prêmio Jabuti de 1972. Ambientado no Nordeste dos anos 1950, o romance narra a história de Getúlio Santos Bezerra, homem de confiança de um poderoso coronel de Sergipe, que precisa levar um preso político de Paulo Afonso até Aracaju. 

Setembro não tem sentido é o primeiro romance de João Ubaldo Ribeiro, escrito quando o autor tinha pouco mais de 20 anos de idade, mas que já revela características que o consagrariam como mestre da literatura contemporânea. 

Um brasileiro em Berlim é composto por 16 crônicas escritas durante os 15 meses em que João Ubaldo permaneceu na Alemanha. O livro aborda os estereótipos associados ao brasileiro como um povo sexualmente libertino e o contrapõe à sisudez, também estereotipada, do alemão, lembrando que na Alemanha a nudez pública é tratada com mais naturalidade do que em terras tupiniquins. 

Viva o povo brasileiro se desenvolve em grande parte no século XIX, mas avança até 1977. Nele, realidade e ficção se misturam para criar um épico brasileiro com passagens heroicas e cômicas, tendo como pano de fundo momentos decisivos para a história do país, como a Revolta de Canudos e a Guerra do Paraguai. 
 
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