sexta-feira, 6 de maio de 2016

AS MÃOS DA MINHA MÃE


As mãos da minha mãe são mágicas. Dela já saíram os mais belos carinhos, vestidos de noiva, enxovais de bebê, vestidos lindos de criança e roupas de adultos. Das mãos da minha mãe saem quibes maravilhosos, macarronada caseira e o bolo verde que é de comer rezando. Das mãos da minha mãe saem letras lindas que preenchem páginas com receitas e orações... Mãos verdadeiramente mágicas.

Mas nada se compara ao amor e à segurança que ela sempre me deu. Quando criança, eu tinha um pavor noturno, medo sei lá do que e ela simplesmente me falava assim: "me dá sua mão... Pronto... agora pode dormir porque estou junto de você." E eu dormia segura e feliz. Até hoje, quando aparece o bicho-papão, é nas mãos dela que entrego meus medos e é delas que me vem a força e o conforto.

Mãos mágicas tem minha mãe, que me abençoam todos os dias e que ajudam na caminhada de filhos, netos e bisneta.

São mágicas as mãos de minha mãe.
Abençoadas são as mãos de minha mãe.
Mãos de luta e de amor.
Mãos de mãe na sua plenitude.

Maria Emilia Algebaile

quarta-feira, 20 de abril de 2016

RESENHA – O PIANO, de Jerusa Nina
por Maria Emilia Algebaile

Primeiro romance de Jesusa Nina, O Piano, Editora Giostri, SP, 2015, nos traz a leitura prazerosa de um texto bem escrito e sensível que nos permite viajar por nossa infância e adolescência, revisitando nossos sonhos e medos, percebendo os caminhos que tanto nos aproximam e nos fazem sermos tão diferentes uns dos outros.
Desde o início da leitura temos a clara sensação de estarmos nos construindo ao acompanhar o crescimento da personagem-narradora Áurea. E cada capítulo é narrado com tamanha simplicidade e delicadeza que sentimos mesmo nosso envolvimento aumentando a cada capítulo desta trama.
Obedecendo a uma narrativa linear, observamos, no entanto, que a fala do narrador vem de um lugar futuro e, por isso mesmo, empresta ao texto muita  verossimilhança e omnisciência. Não são poucos os momentos em que Áurea, a personagem-narradora, sinaliza não ter clareza do estava vivendo naquele momento, mas que mais tarde teria completa consciência o que, portanto, oferece o aval para exprimir tal opinião no momento narrado. Não ficam fios soltos.
O tempo vivido e o tempo narrado dialogam o tempo todo e isso dá uma dinâmica bastante interessante ao texto, que é trabalhado observando um cuidado respeitoso pela língua e suas normas, com expressões precisas, palavras bem colocadas e parágrafos construídos com a preocupação de quem sabe o valor e a importância de uma frase bem feita, seja musical ou literária. Como a narradora já é uma pessoa adulta e culta, a linguagem empregada soa perfeita. Fosse uma jovem, haveria necessidade de revisão para compor o quadro ideal. Mas está perfeito do jeito que está. 
Se “a música é o resultado do encontro entre o compositor e seu intérprete”, a literatura também é o encontro entre o escritor e o leitor. E esse nosso encontro com Jerusa Nina é tecido com os fios da sensibilidade. Impossível não nos envolvermos pelo enredo, torcendo por Áurea ou simplesmente acompanhando suas descobertas e conquistas. Impossível não nos emocionarmos com sentimentos tão complexos e, ao mesmo tempo, tão comuns em nossas vidas, em nossas histórias. Um belo livro. 


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

POEMA DA TRISTE CONSTATAÇÃO
por Maria Emilia Algebaile

Aquela mulher no espelho que me dá adeus
Sou eu ou é a outra?
Eu me despeço
Ou a reencontro?
É um aceno
Ou uma despedida?
Essa mulher que vejo no espelho
É tão diferente de mim
E, ao mesmo tempo, tão igual...
Quanto dela será meu?
Quanto de mim será o que ela pensa que eu sou?
Não há divergência
Mas também não nos completamos
É um avesso?
É um direito?
É o que é?

O que será?

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016





UMA BELA NOITE
Maria Emilia Algebaile

Vejo uma lua cheia daquelas que fazem a gente chorar por vários
motivos, sendo o principal deles o fato de sermos gente e não lua,
nem mesmo, sequer, a luz que ilumina a lua e a torna tão misteriosa
e implacável. Estou deitada na beira de um rio, um rio qualquer, no
meio do mundo, descansando o corpo que foi muito exigido por nadar
quilômetros e que, agora, espera pelos acontecimentos.
Queria um pouco de paz para refazer as forças e recomeçar o caminho
sem deixar pegadas. O rio possibilitou essa façanha: deslocar-
me sem deixar marcas para que ninguém possa me seguir. Sem
rastro, sou eu.
Descobri a hora de parar de nadar quando as mãos e os pés ficaram
enrugados feito pele de velho e a respiração ficou tão difícil feito
a de gente que perdeu o amor. Meus músculos estão exauridos como
os de mãe após o parto. Não há criança para recompensar a dor. Não
trago filhos, talvez não os tenha merecido ou, quem sabe, meu corpo
tenha tido a lucidez de não impor o sofrimento da eternização a que
fui submetida, geração após geração, na errância de um mundo que
já se sabia finito.
Parei de nadar e deixei a correnteza me levar; aí, foi só escolher
uma margem para atracar e descansar. Parece simples, mas me perdi
em horas sem saber como tratar dessa eterna dificuldade: a de escolher
a margem certa. Este permanente problema a me atormentar até
nos dias mais estranhos. Alheia a mim mesma, sou estrangeira nas
veredas por onde o destino me leva. Não escolhi esta ou aquela margem,
deixei que o rio fizesse isso por mim e foi assim que meu corpo
foi se aproximando da margem esquerda do rio, talvez porque seja
canhota, talvez porque o coração fique do lado esquerdo, talvez por
uma antiga e bonita ideologia. Vai saber agora.
Deitei-me à margem esquerda do rio e vi aquela lua estupenda.
Não chorei, não sou dessas coisas. Mas devo confessar que fiquei e
continuo emocionada. Luas cheias sempre me arranharam a placidez
da alma e do corpo, como o risco que meu corpo fez na lâmina
d’água ao percorrer o rio. O risco já não aparece mais, mas eu sei que
ele existiu, eu sinto que ele me arranhou e que, por isso, eu mudei.
Permito-me ficar ali depositada, na margem. Abandono-me.
E ela está lá a me espionar como sempre, a lua. E eu não consigo
dormir, talvez pelo cansaço, talvez pela expectativa, talvez porque
seja a minha última chance de ver a lua assim tão lua. Uma vez me
recomendaram que eu vivesse cada verão como se fosse o último.
Não sei se isso me atrelou a este sentimento de finitude que não deixa
eu me espantar com o final de tudo, dos tempos, das pedras, do
luar. Nunca saberei.
Não, não estou fugindo de ninguém, nem de mim. Simplesmente
estou. Desenvolvi, pela vida, uma relação simbiótica com o espaço
que me cerca. O espaço físico me ajuda a sentir mais pungentemente
minhas vísceras e recalques, meus risos e choros, minhas dúvidas
e interdições. Pessoas são muito complicadas, têm muitas nuances
que meus olhos não conseguem perceber. Gente dá muito trabalho.
A solidão dos tempos sempre foi minha companheira e cúmplice,
nada mais desértico e verdadeiro do que estar mergulhada numa
água gelada sem ter a quem se dirigir, sem referência, sem me sentir
de volta ao útero. Eu comigo mesma e nada mais. Nem Deus, nem
Mãe. Só eu.
Não estou mesmo em tempos de buscar companhia para um momento
de dor, um instante de finalização que pode se estender por
alguns dias, algumas horas, alguns minutos... No fundo, o fim sempre
está próximo. Sempre me acompanha essa sensação e é inútil
nutrir esperanças de deixar as contas acertadas para quando chegar
o momento, porque o momento é agora e depois já passa a ser outra
história.
Andei pelo mundo buscando respostas e nem a ciência nem as
religiões conseguiram desatar os nós que poderiam me levar a Deus.
Eu estava só e ele também. Do começo ao fim, estaremos sós. Sabendo
do fim, deveria ter passado pela torrente da vida sem questionar
mais nada. E agora, debaixo dessa lua, quando o fim se aproxima,
tenho a revelação de todas as minhas inquietudes. Tudo tão cristalino,
tão simples, tão. O que faço com as respostas agora, me digam, o
que faço com elas?
Sou eu na margem do rio com os cabelos molhados, o corpo tremendo
de frio e essa lua entrando pela minha vagina e me enchendo
de prazer. Deixo meu relato para ninguém. Deixo minha vida para
ninguém. Desde o estouro da bolsa d’água, é na correnteza que vamos
nos despedindo da vida.
Tantas verdades quantas são as versões de cada um, de cada crime,
de cada castigo. Tantas conquistas quantos são os fracassos, pois
cada um é apenas um lado da moeda. A conclusão é que todos perdem.
No dia do juízo final não teremos contas a pagar. Estaremos todos
preocupados demais com o depois de amanhã. Será que ele virá?
Tenho fé, creio piamente no poder destruidor do homem, mas não
quero macular meus olhos com as imagens que eu já me cansei de
ver nas janelas eletrônicas. A virtualidade machuca muito, mas vai
deixando em nós uma couraça de proteção. Não somos mais sensíveis
a nada. Nem Deus, nem Mãe. O que nos toca são as garras de
nossa própria imagem numa solidão eterna. Nada mais.
Aos poucos, começo a ver outras luas, talvez umas estrelas, uns
brilhos cruzando o céu, e um zumbido intenso que invade meus ouvidos,
me enchendo de medo, um medo que eu não deveria sentir.
A lua está lá ainda, as outras luas explodem em cores quentes e eu
começo a sentir uns respingos a me queimar a pele. Logo, logo, fecharei
os olhos. Desculpem-me os amigos que deixei pelas cidades.
Perdoem-me os amores que não vivi. Peço clemência, mas preciso
estar só. Desde o começo, é preciso saber estar só. Esta é uma noite
linda e eu posso ficar por aqui mesmo esperando o mundo acabar.

Este conto faz parte da coletânea: "O ÚLTIMO LIVRO DO FIM", Lins, Bogado (Org.) Editora Baluarte, Rio de Janeiro, 2013.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

EMBAIXO DA ÁRVORE PELADA

Foi há pouco tempo que descobri seu nome. Para mim, sempre foi a “árvore pelada”. Ficava no jardinzinho de entrada da casa de minha mãe e dava umas flores brancas lindíssimas, de suave perfume; seu tronco era liso, robusto, com uns desenhos muito bonitos e soltava uma seiva leitosa quando ferido. As folhas eram duras, grandes, largas e brilhantes, de um verde escuro peculiar. Lá pelo mês de abril ou maio, ela se transformava na árvore pelada, pois caíam-lhe todas as folhas. Nessa época ela também era linda! O jasmim manga começava a florescer em final de agosto e a árvore se vestia de novo na primavera, mostrando todo o seu esplendor.
Embaixo da árvore pelada, muita coisa aconteceu. Ela foi testemunha ocular e paisagem para fotografias de muitos momentos importantes de minha vida. No início, ainda um arbusto e, depois, grande, cheia de galhos, tomando quase que a entrada toda da casa, encobrindo o portão e fazendo sombra no pedacinho de varanda onde meu pai pegava sol pela manhã.
Tenho uma foto com um barrigão de seis meses de gravidez, uma promessa que se anunciava, embaixo da árvore pelada.
Fiz corações e escrevi iniciais com uma faquinha no tronco da árvore pelada. As letras e os desenhos foram ficando disformes conforme a árvore pelada crescia, assim como os meus antigos amores.
Vi meu pai voltar a dar seus primeiros passos após o derrame, embaixo da árvore pelada.
Enchi de serpentinas a árvore pelada.
Coloquei bolas coloridas e pisca-pisca para transformar em árvore de Natal a árvore pelada.
Amarrei umas cordas e transformei em varal de fraldas os galhos da árvore pelada.
Deitei no chão e fiquei uma tarde quase inteira olhando para o céu, pensando nos meus problemas e tropeços, por entre as flores da árvore pelada.
Amarrei meu cachorro, depois de ter-lhe dado banho, para que secasse embaixo da árvore pelada.
Varri o quintal para recolher as folhas que caíam no chão embaixo da árvore pelada.
Tirei fotos do bloco de carnaval, todo mundo fantasiado, embaixo da árvore pelada.

Um dia, minha mãe resolveu se mudar da casa e minhas histórias ficaram registradas na árvore pelada, que foi cortada pela nova moradora para que se pudesse fazer uma garagem para o carro novo.

Do livro: Mulheres que correm com as baratas, Editora Torre, Rio de janeiro, 2011

domingo, 3 de janeiro de 2016

A MULHER QUE CANTA

Na pequena cozinha do sobradinho, ela cantava novamente. Cabelos longos presos para trás, na altura da nuca, olhar de quem procura algo no horizonte, algo que sabe não existir e que por isso mesmo não sabe o que é. Ela canta. Canta alto e livre. Canta de maneira apaixonada, numa interpretação tão intensa que lembra uma ópera, aliás, nunca assistida.
Perdeu-se o dia em que teve início a cantoria. No início, dizem, todos gostavam. Era uma voz tímida, suave. Quase um lamento. Talvez fosse época da bossa nova e talvez tivesse dado a partida quando fazia suas caminhadas pela orla de Copacabana, inspirada pela tardinha que caía. Talvez tivesse começado a cantar em substituição às diversas lágrimas que vinha derramando após uma paixão reprimida. Talvez tivesse feito um pacto com o demônio para esquecer de vez os problemas que haviam surgido após um casamento triste com um homem triste que tinha para lhe oferecer uma vivência triste. Talvez. Era tanto talvez que talvez tivesse começado a cantar em busca de algo mais concreto.
Quando interpelada, limitava-se a cantar mais alto. Cantava e isso lhe bastava.
Com o tempo, foi expandindo seu repertório e buscando novas formas e tons para as interpretações. Pela manhã, músicas alegres. As babás com os carrinhos de bebê, os porteiros lavando as calçadas, as crianças indo para a escola, não havia quem não desse uma paradinha em frente ao sobrado para ouvir um pouquinho da cantoria. Às seis da tarde, juntava gente na calçada para ouvir a Ave-Maria. O trânsito ficava tumultuado e os guardas até começaram a colocar cones na calçada para impedir que se formasse grande aglomeração, mas os passantes davam um jeitinho e se acomodavam para ouvi-la. Houve época em que, terminada a música, os ouvintes rezavam de mãos dadas pela paz no Rio de Janeiro. Lá pela meia-noite, um repertório triste, que falava sempre de amores perdidos, fazia mudar o perfil da plateia. As meninas de programa do calçadão juntavam-se aos estudantes dos cursos noturnos e aos casais que voltavam ou iam para suas noitadas. Homens perdidos na noite e pessoas solitárias em geral identificavam-se com as canções que ela cantava. Nessas ocasiões, ouvia-se o choro de mulheres encostadas à grade do sobrado. Vizinhos preocupados em acordar cedo para o trabalho jogavam sacos de água. Copacabana se tornava pequena para tamanha profusão de sentimentos e paixões despertados no embalo das músicas cantadas sempre em voz muito alta.
Mas, com o passar do tempo, os horários começaram a não importar muito, então, às vezes, no meio da tarde, ouvia-se fados e boleros, músicas tristes para uma vida triste. E aí, aumentaram consideravelmente as reclamações. O marido, com grandes olheiras que davam sustentação a um olhar vazio, andava aborrecido com os comentários dos vizinhos sobre a cantora louca. Os filhos, com seus fones de ouvido escutando rock pauleira, não traziam mais os amigos em casa com vergonha da mãe que nunca cessava o seu cantar. A polícia fazia visitas regulares, numa tentativa de intimidar a cantora e também por curiosidade. Alguns policiais até que gostavam daquela voz e do repertório.
 Alheia a tudo, ela cantava. Desesperadamente cantava.
A mídia fazia sua parte, mas tudo ficava no terreno da especulação. Algumas pessoas afirmavam que ela já nascera cantando. Uma senhora aposentada, moradora “desde menina” da Nossa Senhora de Copacabana, afirmava categoricamente que seu pai, um médico importante de antigamente, narrava impressionado um parto que fizera logo ao se formar. A criança, uma menina moreninha que tinha asas no olhar, ao invés de chorar ao nascer, havia cantado a marchinha de Chiquinha Gonzaga “oi, abre-alas, que eu quero passar...” Outras pessoas, menos radicais ou criativas, diziam que já fazia uma década e algumas horas que se ouvia a mulher cantando. Todos tinham uma opinião a dar, um comentário a fazer. Todos inventavam um jeito de protagonizar por um momento aquela história.
Aquela mulher já não discutia mais com o marido, não brigava mais com os filhos, não chorava em frente à televisão. Simplesmente cantava. Lavava a louça cantando; arrumava a casa cantando; chorava cantando; morria todos os dias cantando.
Talvez fosse uma maldição que estaria se aproximando, talvez ela anunciasse o final dos tempos. Se no início foi o verbo, quem sabe no final seria a música? Por isso, padres foram chamados para benzer o local e as pessoas que por lá estivessem; pastores vieram prestar assistência religiosa; as mães de santo dos terreiros dos subúrbios faziam suas oferendas pela calçada, o que criava um enorme fuzuê com os garis da Comlurb e até os Hare-Krishna dançavam e cantavam, entoando seus mantras em frente ao sobradinho.
A mulher cantora sempre fora de poucas palavras e gestos. Também pouco ouvira durante a vida. Foi cultivando uns silêncios gritantes dentro do coração, que nem personagem de Guimarães Rosa. Os sentimentos represados durante toda a vida; as paixões não vividas; todas as palavras não ditas; nada disso importava mais. Cantava.
E cantando está agora, enquanto homens bebem pelos bares da Prado Júnior, enquanto pivetes tentam ganhar dinheiro nos sinais da Barata Ribeiro, enquanto os passantes dos ônibus levam em seus ouvidos trechos de músicas desconhecidas; enquanto eu escrevo e você lê alguma coisa para fingir que não estamos sós.

Do livro: Mulheres que correm com as baratas, Editora Torre, Rio de Janeiro, 2011