terça-feira, 5 de novembro de 2019

A PRAGA DO IPHONE




É a terceira vez que começo o texto. O texto que só está na minha cabeça e não passa pra telinha do iphone nem por um milagre. Coloco uma musica no spotfy pra ver se me ajuda a baixar esse santo, mas está difícil. Talvez seja porque descobri hoje que minha pressão arterial está aumentando. Assim como a temperatura terrestre vem aumentando na razão de 1 grau por ano, minha pressão arterial também me pegou desprevenida e o médico me deu a notícia com um tom de censura. Até quando manterei minhas geleiras intactas? Qual será meu primeiro iceberg e o que ele encontrará pela frente? Tsunamis que o analista não consegue estancar. E esse tempo que não me dá refresco, vai rápido demais e tenho medo de não conseguir acompanhá-lo. E o texto que não nasce. Nem pode. Minha cabeça está lá na festa de confraternização de minha turma de ginásio. Eu era tão menina. O problema é que ainda sou. Ainda sonho. Ainda desejo. Só não tenho mais é tempo. E esse texto que deveria ser escrito. Tenho prazos. Os prazos me perseguem e eu, que sempre funcionei bem sob pressão, fico aqui paralisada com o iphone na mão. A única coisa que faço andar são as bolinhas coloridas do jogo Bubble não sei o quê. Acerto as bolinhas coloridas em grupos de bolinhas da mesma cor e ganho o jogo. Fogos de artifício e uma bruxinha voando comemoram minha vitória. Mas não posso me entusiasmar demais. Minha pressão não pode se alterar. O médico me disse. E não devo comer sal. São muitos deveres contrariando meus quereres. Vou para o Facebook mas logo me irrito com postagens políticas que me tiram do sério. O mundo endoideceu e o Brasil, especificamente, parece um caso perdido. Pego minha garrafinha d’água na cabeceira e bebo 10 goles. Outra recomedação médica: você precisa beber água. Criei um mecanismo que está dando certo. Toda vez que leio ou ouço alguma coisa que me irrita, bebo água. Vou morrer afogada por dentro. Vou morrer sem conseguir escrever o texto que eu queria escrever. Seria até uma história interessante, mas ela só existe na minha cabeça. Muita coisa só existe na minha cabeça e eu acredito que essas coisas estão no mundo. Eu e Paulinho da Viola. Eu não aprendo mesmo. Talvez por isso eu viaje tanto ou, pelo menos, pense em viajar o tempo inteiro. Faço vários roteiros, pesquiso os lugares e viajo. Mas só dentro da minha cabeça. Assim como esse texto que eu desisto de escrever. Melhor desligar tudo e dormir.


Maria Emilia Algebaile

terça-feira, 29 de outubro de 2019

A FALTA


A FALTA

Faltam-me letras e frases,
Falta-me, sobretudo, coragem.
Porque as palavras sangram,
As letras não são suficientes
E a poesia não tem limites.
Sou pouca e enquadrada,
Não me sinto indignada,
Não sofro de amor e não sonho,
Não questiono nem faço louvação.
Não posso ser poeta.
A vida é rara.
Falta-me alguma dimensão.


Maria Emilia Algebaile

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Em Santiago de Cuba, uma boa lembrança




Balada de los abuelos





Sombras que sólo yo veo,
me escoltan mis dos abuelos.
Lanza con punta de hueso,
tambor de cuero y madera:
mi abuelo negro.
Gorguera en el cuello ancho,
gris armadura guerrera:
mi abuelo blanco.
Pie desnudo, torso pétreo
los de mi negro;
pupilas de vidrio antártico
las de mi blanco.
África de selvas húmedas
y de gordos gongos sordos…
—¡Me muero!
(Dice mi abuelo negro).
Aguaprieta de caimanes,
verdes mañanas de cocos…
—¡Me canso!
(Dice mi abuelo blanco).
Oh velas de amargo viento,
galeón ardiendo en oro…
—¡Me muero!
(Dice mi abuelo negro.)
¡Oh costas de cuello virgen
engañadas de abalorios…!
—¡Me canso!
(Dice mi abuelo blanco.)
¡Oh puro sol repujado,
preso en el aro del trópico;
oh luna redonda y limpia
sobre el sueño de los monos!
¡Qué de barcos, qué de barcos!
¡Qué de negros, qué de negros!
¡Qué largo fulgor de cañas!
¡Qué látigo el del negrero!
Piedra de llanto y de sangre,
venas y ojos entreabiertos,
y madrugadas vacías,
y atardeceres de ingenio,
y una gran voz, fuerte voz,
despedazando el silencio.
¡Qué de barcos, qué de barcos,
qué de negros!
Sombras que sólo yo veo,
me escoltan mis dos abuelos.
Don Federico me grita
y Taita Facundo calla;
los dos en la noche sueñan
y andan, andan.
Yo los junto.
—¡Federico!
¡Facundo! Los dos se abrazan.
Los dos suspiran. Los dos
las fuertes cabezas alzan:
los dos del mismo tamaño,
bajo las estrellas altas;
los dos del mismo tamaño,
ansia negra y ansia blanca,
los dos del mismo tamaño,
gritan, sueñan, lloran, cantan.
Sueñan, lloran. Cantan.
Lloran, cantan.
¡Cantan!
Tomado de West Indies Ltd., en Obra poética 1920-1972, La Habana, Instituto Cubano del Libro, 1972.