quarta-feira, 27 de julho de 2011

Mulheres que correm com as baratas é um livro de contos e crônicas que marca a estreia de Maria Emília Algebaile no cenário literário brasileiro. Os contos têm como foco as atividades cotidianas de mulheres que, encarnadas em diferentes papéis e confrontadas com diferentes momentos e situações de vida, revelam aspectos obscuros da condição feminina nos tempos atuais. Anti-heroínas, desgraçadamente comuns, as mulheres que povoam o universo quase subterrâneo exposto nestes contos são inusitadamente surpreendentes, seja pela capacidade de imersão e diluição na vida que lhes é reservada, seja pelas inesperadas respostas frente às situações terminais, seja pelo inquieto subsolo que o conjunto de suas múltiplas facetas denuncia.
Prefácio de Anazildo Vasconcelos da Silva 
Foto da capa: Magali Maciel Rios
150 páginas. Ed. Torre

segunda-feira, 25 de julho de 2011

RECORDAÇÕES DO LÍBANO


Quando eu era pequena, o que conhecia do Líbano era o meu avô. E ele era lindo, um homem grande, elegante, carinhoso comigo e minha irmã. E ele nos pegava no colo e falava enrolado, mas um enrolado que era plenamente entendido por nós, tão pequenas e tão maravilhadas com as coisas que ele contava.
E ele contava coisas sobre seu país, de onde tinha saído com minha avó grávida de minha tia Genoveva, para vir construir uma casa no Brasil e ter mais sete filhos, entre eles, meu pai Faid. E ele contava também que, naquela época, o Líbano estava tomado pela França, por isso ele tinha vindo para o Brasil com um passaporte cheio de carimbos franceses. Eu não entendia bem o que significava aquilo, mas sentia que ele contava esta parte da história com voz triste. Ele era filho único e tinha deixado a mãe e o pai por lá para vir tentar a vida no “novo” continente.
E ele nos mostrava um camelo, que era o animal do Líbano, assim como o canguru é o animal da Austrália. E nos contava que o camelo passava dias e dias sem beber água, atravessando o deserto. E eu pensava o que poderia induzir um camelo a atravessar um deserto, ainda mais sem beber água, sem saber que no futuro, muitas vezes eu me sentiria meio camelo...
Tinha também, em sua escrivaninha, uma fruta seca, já meio desmanchada, que ele dizia ser de lá, do Líbano. E tinha uma bandeira com uma arvorezinha verde que eu achava linda! Ah! E os jornais que ele recebia escritos em árabe...a mesma língua de Sherazade das Mil e uma Noites.
Meu universo libanês se restringia a estes objetos, a estes sentimentos e, principalmente, ao meu avô. Mas era um universo tão lindo, tão mágico! Meu avô morreu quando eu tinha 6 anos e até hoje eu me lembro do meu Líbano particular. Principalmente quando vejo esta guerra maldita que devasta o país do meu avô, com a morte de tantas crianças do Líbano real, com a intolerância de um Estado cruel que impede que os camelos atravessem o deserto para cumprir suas sinas, que impede que as frutas cresçam nas árvores gerando futuras sementes, que impede que os cedros do Líbano cresçam em paz, principalmente agora, a imagem que tenho do Líbano é a cara do meu avô sorrindo, são os braços do meu avô me pegando no colo, é a fala do meu avô naquele português enrolado contando uma história de um país maravilhoso que corre hoje o risco de existir apenas em pensamentos.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

RECEITA PARA O DIA DO HOMEM

Coloque algumas rodelas de cebola numa panela média, regue com azeite, acrescente pedaços de alho. Não convém espremer nem socar os dentes de alho; retire sua casca e parta-os em três, no sentido do comprimento. Ligue o fogo e coloque a panela para esquentar. Pegue um pedaço de lombo de bacalhau já dessalgado e coloque em cima das cebolas e dos alhos. Deixe o fogo bem brando e tampe a panela, para cozinhar bem devagarinho.
Vá até a geladeira e sirva-se de uma taça de vinho. Saboreie-o também sem pressa alguma.
Corte em pedaços bem grandes dois pimentões verdes e reserve. De vez em quando, abra a panela e observe como o bacalhau está se comportando. Se precisar, acrescente algumas colheres de água. Sempre aos pouquinhos.
Outro gole do vinho.
Pensei nos meus domingos e percebi como cada um pode ser curtido de uma forma diferente. Mesmo fazendo sol, não fui à praia. Abri as janelas do apartamento de manhã cedo e fiquei olhando o verde que cresce a cada ano. Quando vim morar aqui, a vista que tinha da janela era boa, mas era uma pedra com alguma vegetação ali e acolá. Hoje, tenho à frente dos olhos e ao alcance das lembranças, várias árvores frutíferas, a pedra, flores miudinhas e um monte de verde que me deixa feliz. Foi ali na janela que resolvi: hoje vou fazer um bacalhau especial. Assim começou esta história.
Pausa para o vinho.
Volte a observar o bacalhau, ele cozinha rápido e você pode ir soltando uns nacos de vez em quando. Quando ele estiver todo despedaçado, em pedaços não muito miúdos, acrescente os pimentões cortados, azeitonas pretas e mais azeite. A panela sempre tampada.
Nessa altura, você já bebeu umas duas taças de vinho e convém arrumar a mesa. Chame o marido, o namorado, o companheiro, o filho, o amigo para partilhar este momento. Toalha da Provence, toda colorida, com muita energia e muitas lembranças de viagens deliciosas.  Partilhe com ele, também, nova taça de vinho e deixe que ele  sinta o cheiro delicioso que vem lá da cozinha, mas não diga o que está preparando.
O cozinhar é só, mas o comer é coletivo. Quem mesmo escreveu isso, ou coisa parecida???
Arroz branco, uma saladona de batatas e o bacalhau especial compõem a mesa onde, entre risos provocados pelo vinho e pelas lembranças de ambos, você pode então dizer que, além de ter amado cozinhar neste domingo tão ensolarado e especial, o almoço é para comemorar o recém-criado "Dia do Homem". Ele poderá até estranhar, mas vai gostar!
Dia do Homem? E o que isso significa? (Poderão me perguntar algumas amigas mais feministas.)  Sinceramente, não sei, mas que é uma curtição, é! Aliás, será difícil dizer quem curtiu mais, se eu ou ele, afinal, não se trata de um concurso, mas da vida fruindo calmamente....
Receita feita, receita compartilhada. Deliciem-se como eu me deliciei!

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Trecho do livro "MULHERES QUE CORREM COM AS BARATAS"

-  “Olha bem pra mim e diz o que você vê. Diz o que você pensa. Olha.”
- “Dorme. É melhor eu não dizer nada.”


Se alguma vez você já viveu esta cena, então deve imaginar o que tem por trás dessa história...

Trecho do livro "MULHERES QUE CORREM COM AS BARATAS"

“A toalha dependurada na maçaneta da porta parecia contar outras histórias semelhantes àquela e apresentava em tons encardidos as digitais de outros corpos.”

 Leia o desenrolar dessa e de outras histórias...

quinta-feira, 7 de julho de 2011

PARALELAS

Meus pés repousados no encosto do sofá
me dão conta de que envelheci.
Eles me mostram uma pele clara e cinzenta
como os caminhos por onde os tenho levado a pisar.

Esses pés trazem as curvas da minha vida
inscritas em pequenas varizes
que me sobem pelas pernas.
Minhas pernas cansadas
que  não se abrem mais para o amor,
para os grandes saltos.

Sempre me intrigou
o fato de quase todo velho usar meias.
Descubro agora
que as meias dos velhos
são esconderijos de angústias
e lembranças de um tempo que já foi


Ah! Os velhos descalços, como são felizes!
Os velhos sem meias
sentem  o gozo da vida
pisando a terra sempre fértil.
Os velhos sem meias
têm o sol nos olhos
e contam histórias da vida vivida
e da vida sonhada sob a luz da lua.
Sem meias palavras.

Meus pés assim dispostos,
lado a lado sobre o sofá,
me dão conta de dois caminhos a seguir:
um, para fora do muro;
outro, para dentro das meias.

Meus pés assim paralelos,
me indicam que é hora ainda,
de justificar cada ruga
e vibrar com a história de cada uma delas.

É tempo de decidir:
andar com os pés interiores,
que nunca me deixarão parada no meio do caminho;
ou aguardar, desesperadamente,
que meus pobres pés paralelos
sejam finalmente cobertos pela terra fértil
por onde todos caminham.
Menos eu.

PORTAS E JANELAS

quarta-feira, 6 de julho de 2011

SEMPRE HÁ UMA POSSIBILIDADE


Mulheres em Zagora, Marrocos - Foto: Maria Emilia Algebaile
 
                                                                                                                 


E se o que tivéssemos fosse apenas sussuro?
E se o que víssemos fosse apenas opaco?
E se o espaço que ocupássemos se restringisse às esquinas da vida?

Imaginem quanto assunto teríamos para conversar!

terça-feira, 5 de julho de 2011

RIO DE JANEIRO: CAMPO MINADO

O ônibus parou no sinal de trânsito e fiquei olhando pela janela. Vi dois pés pousados sobre sandálias de uns dez metros de salto. A sandália era verde e tinha umas tirinhas amarradas no tornozelo. As unhas do pé estavam pintadas de vermelho e eram longas, com a beiradinha pintada de branco. Uma coisa singular. Fui elevando a vista e vi umas pernas roliças apertadas numa calça de lycra com estampa de girafa, nova moda da estação, logo pensei. Não pude ver da cintura para cima, pois o ônibus estava cheio e a parte de cima do corpo da pessoa estava fora do meu ângulo de visão.  
O look era contraditório. O verde contrastava com o vermelho. A pele de girafa contrastava com as pernas gordinhas e curtas que, subitamente, começaram a se movimentar para atravessar a rua. Foi quando se ouviu a explosão. Não sei de onde veio uma onde de fúria que sacudiu o ônibus. Se eu estivesse em Angola, pensaria logo se tratar de uma mina. Se eu estivesse no Chile, pensaria no vulcão. Mas estava no Rio de Janeiro, na cidade maravilhosa, e pensei, então, em guerra do tráfico.
Pude observar, no meio do burburinho, um pé da sandália verde voando e um monte de gente pisoteando a girafa que estava, agora, estrebuchando no chão...o ônibus estava em rebuliço e só se ouvia o povo gritando desesperado “fogo!” , “socorro!”, “abre a porta, motorista!” Mas o motorista não abriu a porta e arrancou com o coletivo, deixando a girafa no chão e mais um bueiro do Rio de Janeiro explodido...

segunda-feira, 4 de julho de 2011

"Chove lá fora e aqui faz tanto frio..." Dias como o de hoje me trazem esta música de volta. Lobão repetia "me chama, me chama, me chama..." e eu fico pensando em outros frios, outras sensações que conduzem a estas frases, ou a estes versos, já que se trata de uma letra de música.
Hoje, quando acordei, me permiti ficar de pijama por um longo tempo. Cancelei o pilates e fiquei curtindo o abraço quentinho do maridão. Bebi o café, li o jornal e fiquei pensando... minha secretária puxou um assunto e senti vergonha de estar protegida na minha sala, no meu apartamento, no meu bairro de ruas asfaltadas...ela saiu de casa às 5 da manhã, pegou uma van e veio trabalhar.
Será que sentimos frio de forma diferente? Será que ela sente frio? Será que as mulheres respondem aos sabores da meteorologia com as mesmas sensações? Será que o frio que faz aqui é o mesmo frio que faz lá?
Deprimi. Quantos milhões de mulheres com frio saem de madrugada para trabalhar e deixam seus filhos com frio com seus anjos da guarda, que também devem ter asas de poucas penas e, portanto, sentem igualmente o frio que seus protegidos sentem? Por quem elas chamam? Quem se disponibiliza para as mulheres com frio?
Eu mesma já tive minha época: decidir entre ir trabalhar para "ganhar o pão" ou ficar com minhas filhas para "esquentar o coração". Às vezes, é uma escolha de Sofia! Voltarei ao tema, mas por hora preciso entender melhor que "nem sempre se vê lágrimas no absurdo..."