A MULHER QUE
CANTA
Na pequena
cozinha do sobradinho, ela cantava novamente. Cabelos longos presos para trás,
na altura da nuca, olhar de quem procura algo no horizonte, algo que sabe não
existir e que por isso mesmo não sabe o que é. Ela canta. Canta alto e livre.
Canta de maneira apaixonada, numa interpretação tão intensa que lembra uma
ópera, aliás, nunca assistida.
Perdeu-se o dia
em que teve início a cantoria. No início, dizem, todos gostavam. Era uma voz
tímida, suave. Quase um lamento. Talvez fosse época da bossa nova e talvez
tivesse dado a partida quando fazia suas caminhadas pela orla de Copacabana,
inspirada pela tardinha que caía. Talvez tivesse começado a cantar em
substituição às diversas lágrimas que vinha derramando após uma paixão reprimida.
Talvez tivesse feito um pacto com o demônio para esquecer de vez os problemas
que haviam surgido após um casamento triste com um homem triste que tinha para
lhe oferecer uma vivência triste. Talvez. Era tanto talvez que talvez tivesse
começado a cantar em busca de algo mais concreto.
Quando
interpelada, limitava-se a cantar mais alto. Cantava e isso lhe bastava.
Com o tempo,
foi expandindo seu repertório e buscando novas formas e tons para as
interpretações. Pela manhã, músicas alegres. As babás com os carrinhos de bebê,
os porteiros lavando as calçadas, as crianças indo para a escola, não havia
quem não desse uma paradinha em frente ao sobrado para ouvir um pouquinho da
cantoria. Às seis da tarde, juntava gente na calçada para ouvir a Ave-Maria. O
trânsito ficava tumultuado e os guardas até começaram a colocar cones na
calçada para impedir que se formasse grande aglomeração, mas os passantes davam
um jeitinho e se acomodavam para ouvi-la. Houve época em que, terminada a
música, os ouvintes rezavam de mãos dadas pela paz no Rio de Janeiro. Lá pela
meia-noite, um repertório triste, que falava sempre de amores perdidos, fazia
mudar o perfil da plateia. As meninas de programa do calçadão juntavam-se aos estudantes dos cursos
noturnos e aos casais que voltavam ou iam para suas noitadas. Homens perdidos
na noite e pessoas solitárias em geral identificavam-se com as canções que ela
cantava. Nessas ocasiões, ouvia-se o choro de mulheres encostadas à grade do
sobrado. Vizinhos preocupados em acordar cedo para o trabalho jogavam sacos de
água. Copacabana se tornava pequena para tamanha profusão de sentimentos e
paixões despertados no embalo das músicas cantadas sempre em voz muito alta.
Mas, com o
passar do tempo, os horários começaram a não importar muito, então, às vezes,
no meio da tarde, ouvia-se fados e boleros, músicas tristes para uma vida
triste. E aí, aumentaram consideravelmente as reclamações. O marido, com
grandes olheiras que davam sustentação a um olhar vazio, andava aborrecido com
os comentários dos vizinhos sobre a cantora louca. Os filhos, com seus fones de
ouvido escutando rock pauleira, não traziam mais os amigos em casa com vergonha
da mãe que nunca cessava o seu cantar. A polícia fazia visitas regulares, numa
tentativa de intimidar a cantora e também por curiosidade. Alguns policiais até
que gostavam daquela voz e do repertório.
Alheia a tudo, ela cantava. Desesperadamente
cantava.
A mídia fazia
sua parte, mas tudo ficava no terreno da especulação. Algumas pessoas afirmavam
que ela já nascera cantando. Uma senhora aposentada, moradora “desde menina” da
Nossa Senhora de Copacabana, afirmava categoricamente que seu pai, um médico
importante de antigamente, narrava impressionado um parto que fizera logo ao se
formar. A criança, uma menina moreninha que tinha asas no olhar, ao invés de
chorar ao nascer, havia cantado a marchinha de Chiquinha Gonzaga “oi,
abre-alas, que eu quero passar...” Outras pessoas, menos radicais ou criativas,
diziam que já fazia uma década e algumas horas que se ouvia a mulher cantando.
Todos tinham uma opinião a dar, um comentário a fazer. Todos inventavam um
jeito de protagonizar por um momento aquela história.
Aquela mulher
já não discutia mais com o marido, não brigava mais com os filhos, não chorava
em frente à televisão. Simplesmente cantava. Lavava a louça cantando; arrumava
a casa cantando; chorava cantando; morria todos os dias cantando.
Talvez fosse
uma maldição que estaria se aproximando, talvez ela anunciasse o final dos
tempos. Se no início foi o verbo, quem sabe no final seria a música? Por isso,
padres foram chamados para benzer o local e as pessoas que por lá estivessem;
pastores vieram prestar assistência religiosa; as mães de santo dos terreiros
dos subúrbios faziam suas oferendas pela calçada, o que criava um enorme fuzuê
com os garis da Comlurb e até os Hare-Krishna dançavam e cantavam, entoando seus
mantras em frente ao sobradinho.
A mulher
cantora sempre fora de poucas palavras e gestos. Também pouco ouvira durante a
vida. Foi cultivando uns silêncios gritantes dentro do coração, que nem
personagem de Guimarães Rosa. Os sentimentos represados durante toda a vida; as
paixões não vividas; todas as palavras não ditas; nada disso importava mais.
Cantava.
E
cantando está agora, enquanto homens bebem pelos bares da Prado Júnior,
enquanto pivetes tentam ganhar dinheiro nos sinais da Barata Ribeiro, enquanto
os passantes dos ônibus levam em seus ouvidos trechos de músicas desconhecidas;
enquanto eu escrevo e você lê alguma coisa para fingir que não estamos sós.Do livro: Mulheres que correm com as baratas, Editora Torre, Rio de Janeiro, 2011
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