domingo, 3 de janeiro de 2016

A MULHER QUE CANTA

Na pequena cozinha do sobradinho, ela cantava novamente. Cabelos longos presos para trás, na altura da nuca, olhar de quem procura algo no horizonte, algo que sabe não existir e que por isso mesmo não sabe o que é. Ela canta. Canta alto e livre. Canta de maneira apaixonada, numa interpretação tão intensa que lembra uma ópera, aliás, nunca assistida.
Perdeu-se o dia em que teve início a cantoria. No início, dizem, todos gostavam. Era uma voz tímida, suave. Quase um lamento. Talvez fosse época da bossa nova e talvez tivesse dado a partida quando fazia suas caminhadas pela orla de Copacabana, inspirada pela tardinha que caía. Talvez tivesse começado a cantar em substituição às diversas lágrimas que vinha derramando após uma paixão reprimida. Talvez tivesse feito um pacto com o demônio para esquecer de vez os problemas que haviam surgido após um casamento triste com um homem triste que tinha para lhe oferecer uma vivência triste. Talvez. Era tanto talvez que talvez tivesse começado a cantar em busca de algo mais concreto.
Quando interpelada, limitava-se a cantar mais alto. Cantava e isso lhe bastava.
Com o tempo, foi expandindo seu repertório e buscando novas formas e tons para as interpretações. Pela manhã, músicas alegres. As babás com os carrinhos de bebê, os porteiros lavando as calçadas, as crianças indo para a escola, não havia quem não desse uma paradinha em frente ao sobrado para ouvir um pouquinho da cantoria. Às seis da tarde, juntava gente na calçada para ouvir a Ave-Maria. O trânsito ficava tumultuado e os guardas até começaram a colocar cones na calçada para impedir que se formasse grande aglomeração, mas os passantes davam um jeitinho e se acomodavam para ouvi-la. Houve época em que, terminada a música, os ouvintes rezavam de mãos dadas pela paz no Rio de Janeiro. Lá pela meia-noite, um repertório triste, que falava sempre de amores perdidos, fazia mudar o perfil da plateia. As meninas de programa do calçadão juntavam-se aos estudantes dos cursos noturnos e aos casais que voltavam ou iam para suas noitadas. Homens perdidos na noite e pessoas solitárias em geral identificavam-se com as canções que ela cantava. Nessas ocasiões, ouvia-se o choro de mulheres encostadas à grade do sobrado. Vizinhos preocupados em acordar cedo para o trabalho jogavam sacos de água. Copacabana se tornava pequena para tamanha profusão de sentimentos e paixões despertados no embalo das músicas cantadas sempre em voz muito alta.
Mas, com o passar do tempo, os horários começaram a não importar muito, então, às vezes, no meio da tarde, ouvia-se fados e boleros, músicas tristes para uma vida triste. E aí, aumentaram consideravelmente as reclamações. O marido, com grandes olheiras que davam sustentação a um olhar vazio, andava aborrecido com os comentários dos vizinhos sobre a cantora louca. Os filhos, com seus fones de ouvido escutando rock pauleira, não traziam mais os amigos em casa com vergonha da mãe que nunca cessava o seu cantar. A polícia fazia visitas regulares, numa tentativa de intimidar a cantora e também por curiosidade. Alguns policiais até que gostavam daquela voz e do repertório.
 Alheia a tudo, ela cantava. Desesperadamente cantava.
A mídia fazia sua parte, mas tudo ficava no terreno da especulação. Algumas pessoas afirmavam que ela já nascera cantando. Uma senhora aposentada, moradora “desde menina” da Nossa Senhora de Copacabana, afirmava categoricamente que seu pai, um médico importante de antigamente, narrava impressionado um parto que fizera logo ao se formar. A criança, uma menina moreninha que tinha asas no olhar, ao invés de chorar ao nascer, havia cantado a marchinha de Chiquinha Gonzaga “oi, abre-alas, que eu quero passar...” Outras pessoas, menos radicais ou criativas, diziam que já fazia uma década e algumas horas que se ouvia a mulher cantando. Todos tinham uma opinião a dar, um comentário a fazer. Todos inventavam um jeito de protagonizar por um momento aquela história.
Aquela mulher já não discutia mais com o marido, não brigava mais com os filhos, não chorava em frente à televisão. Simplesmente cantava. Lavava a louça cantando; arrumava a casa cantando; chorava cantando; morria todos os dias cantando.
Talvez fosse uma maldição que estaria se aproximando, talvez ela anunciasse o final dos tempos. Se no início foi o verbo, quem sabe no final seria a música? Por isso, padres foram chamados para benzer o local e as pessoas que por lá estivessem; pastores vieram prestar assistência religiosa; as mães de santo dos terreiros dos subúrbios faziam suas oferendas pela calçada, o que criava um enorme fuzuê com os garis da Comlurb e até os Hare-Krishna dançavam e cantavam, entoando seus mantras em frente ao sobradinho.
A mulher cantora sempre fora de poucas palavras e gestos. Também pouco ouvira durante a vida. Foi cultivando uns silêncios gritantes dentro do coração, que nem personagem de Guimarães Rosa. Os sentimentos represados durante toda a vida; as paixões não vividas; todas as palavras não ditas; nada disso importava mais. Cantava.
E cantando está agora, enquanto homens bebem pelos bares da Prado Júnior, enquanto pivetes tentam ganhar dinheiro nos sinais da Barata Ribeiro, enquanto os passantes dos ônibus levam em seus ouvidos trechos de músicas desconhecidas; enquanto eu escrevo e você lê alguma coisa para fingir que não estamos sós.

Do livro: Mulheres que correm com as baratas, Editora Torre, Rio de Janeiro, 2011

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