sexta-feira, 29 de janeiro de 2016





UMA BELA NOITE
Maria Emilia Algebaile

Vejo uma lua cheia daquelas que fazem a gente chorar por vários
motivos, sendo o principal deles o fato de sermos gente e não lua,
nem mesmo, sequer, a luz que ilumina a lua e a torna tão misteriosa
e implacável. Estou deitada na beira de um rio, um rio qualquer, no
meio do mundo, descansando o corpo que foi muito exigido por nadar
quilômetros e que, agora, espera pelos acontecimentos.
Queria um pouco de paz para refazer as forças e recomeçar o caminho
sem deixar pegadas. O rio possibilitou essa façanha: deslocar-
me sem deixar marcas para que ninguém possa me seguir. Sem
rastro, sou eu.
Descobri a hora de parar de nadar quando as mãos e os pés ficaram
enrugados feito pele de velho e a respiração ficou tão difícil feito
a de gente que perdeu o amor. Meus músculos estão exauridos como
os de mãe após o parto. Não há criança para recompensar a dor. Não
trago filhos, talvez não os tenha merecido ou, quem sabe, meu corpo
tenha tido a lucidez de não impor o sofrimento da eternização a que
fui submetida, geração após geração, na errância de um mundo que
já se sabia finito.
Parei de nadar e deixei a correnteza me levar; aí, foi só escolher
uma margem para atracar e descansar. Parece simples, mas me perdi
em horas sem saber como tratar dessa eterna dificuldade: a de escolher
a margem certa. Este permanente problema a me atormentar até
nos dias mais estranhos. Alheia a mim mesma, sou estrangeira nas
veredas por onde o destino me leva. Não escolhi esta ou aquela margem,
deixei que o rio fizesse isso por mim e foi assim que meu corpo
foi se aproximando da margem esquerda do rio, talvez porque seja
canhota, talvez porque o coração fique do lado esquerdo, talvez por
uma antiga e bonita ideologia. Vai saber agora.
Deitei-me à margem esquerda do rio e vi aquela lua estupenda.
Não chorei, não sou dessas coisas. Mas devo confessar que fiquei e
continuo emocionada. Luas cheias sempre me arranharam a placidez
da alma e do corpo, como o risco que meu corpo fez na lâmina
d’água ao percorrer o rio. O risco já não aparece mais, mas eu sei que
ele existiu, eu sinto que ele me arranhou e que, por isso, eu mudei.
Permito-me ficar ali depositada, na margem. Abandono-me.
E ela está lá a me espionar como sempre, a lua. E eu não consigo
dormir, talvez pelo cansaço, talvez pela expectativa, talvez porque
seja a minha última chance de ver a lua assim tão lua. Uma vez me
recomendaram que eu vivesse cada verão como se fosse o último.
Não sei se isso me atrelou a este sentimento de finitude que não deixa
eu me espantar com o final de tudo, dos tempos, das pedras, do
luar. Nunca saberei.
Não, não estou fugindo de ninguém, nem de mim. Simplesmente
estou. Desenvolvi, pela vida, uma relação simbiótica com o espaço
que me cerca. O espaço físico me ajuda a sentir mais pungentemente
minhas vísceras e recalques, meus risos e choros, minhas dúvidas
e interdições. Pessoas são muito complicadas, têm muitas nuances
que meus olhos não conseguem perceber. Gente dá muito trabalho.
A solidão dos tempos sempre foi minha companheira e cúmplice,
nada mais desértico e verdadeiro do que estar mergulhada numa
água gelada sem ter a quem se dirigir, sem referência, sem me sentir
de volta ao útero. Eu comigo mesma e nada mais. Nem Deus, nem
Mãe. Só eu.
Não estou mesmo em tempos de buscar companhia para um momento
de dor, um instante de finalização que pode se estender por
alguns dias, algumas horas, alguns minutos... No fundo, o fim sempre
está próximo. Sempre me acompanha essa sensação e é inútil
nutrir esperanças de deixar as contas acertadas para quando chegar
o momento, porque o momento é agora e depois já passa a ser outra
história.
Andei pelo mundo buscando respostas e nem a ciência nem as
religiões conseguiram desatar os nós que poderiam me levar a Deus.
Eu estava só e ele também. Do começo ao fim, estaremos sós. Sabendo
do fim, deveria ter passado pela torrente da vida sem questionar
mais nada. E agora, debaixo dessa lua, quando o fim se aproxima,
tenho a revelação de todas as minhas inquietudes. Tudo tão cristalino,
tão simples, tão. O que faço com as respostas agora, me digam, o
que faço com elas?
Sou eu na margem do rio com os cabelos molhados, o corpo tremendo
de frio e essa lua entrando pela minha vagina e me enchendo
de prazer. Deixo meu relato para ninguém. Deixo minha vida para
ninguém. Desde o estouro da bolsa d’água, é na correnteza que vamos
nos despedindo da vida.
Tantas verdades quantas são as versões de cada um, de cada crime,
de cada castigo. Tantas conquistas quantos são os fracassos, pois
cada um é apenas um lado da moeda. A conclusão é que todos perdem.
No dia do juízo final não teremos contas a pagar. Estaremos todos
preocupados demais com o depois de amanhã. Será que ele virá?
Tenho fé, creio piamente no poder destruidor do homem, mas não
quero macular meus olhos com as imagens que eu já me cansei de
ver nas janelas eletrônicas. A virtualidade machuca muito, mas vai
deixando em nós uma couraça de proteção. Não somos mais sensíveis
a nada. Nem Deus, nem Mãe. O que nos toca são as garras de
nossa própria imagem numa solidão eterna. Nada mais.
Aos poucos, começo a ver outras luas, talvez umas estrelas, uns
brilhos cruzando o céu, e um zumbido intenso que invade meus ouvidos,
me enchendo de medo, um medo que eu não deveria sentir.
A lua está lá ainda, as outras luas explodem em cores quentes e eu
começo a sentir uns respingos a me queimar a pele. Logo, logo, fecharei
os olhos. Desculpem-me os amigos que deixei pelas cidades.
Perdoem-me os amores que não vivi. Peço clemência, mas preciso
estar só. Desde o começo, é preciso saber estar só. Esta é uma noite
linda e eu posso ficar por aqui mesmo esperando o mundo acabar.

Este conto faz parte da coletânea: "O ÚLTIMO LIVRO DO FIM", Lins, Bogado (Org.) Editora Baluarte, Rio de Janeiro, 2013.

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